Joni Mitchell – Hejira: A viagem de Ícaro


“Hejira” é o termo islâmico para “êxodo” ou “odisseia”. O álbum surgiu numa fase experimental para Joni Mitchell. A capa foi um regresso à fotografia, contrariamente às anteriores, pintadas pela própria compositora. Esta, em particular, tornou-se icónica, pois mostra Joni com uma auto-estrada que parece rumar ao seu coração.

Os temas de Hejira são o auto-isolamento e a dúvida sobre a capacidade de amar novamente. Por exemplo, em «Amelia», é dito: “Talvez eu nunca tenha amado realmente, julgo que a verdade é essa, passei toda a minha vida em nuvens, a uma altitude gélida, e a olhar para baixo, para tudo, e despenhei-me nos braços dele. Amelia, foi apenas um falso alarme.”

Hejira foi despoletado pelo rompimento com o baterista John Guerin. Nesta fase, Mitchell viveu algum tempo em casa de Neil Young (outro canadiano, que também participou na gravação do disco, tocando harmónica em «Furry Sings the Blues») e mais tarde fez uma viagem pelos Estados Unidos, em 1976.

Depois de ter dado boleia a um ex-namorado até ao Maine, regressou sozinha, passando pela costa da Florida, contornando o Golfo do México e prosseguindo através dos Estados do Sul, de volta à Califórnia. A jornada ter-lhe-á proporcionado um regresso ao anonimato, com estadias em motéis e conversas com desconhecidos. Mitchell fingia que o Mercedes que guiava não era dela. Foi quando lhe ocorreu a imagem de Amelia Earhart, outra viajante solitária.

1975 foi um ano em que Joni ansiava pela originalidade na música e se afastava da pintura. Começou a incorporar mais seriamente o jazz nas suas composições, bem como ritmos africanos. Adicionando influências literárias e metáforas como a de Amelia Earhart, Mitchell conseguiu o que é justamente considerado um dos seus melhores trabalhos e um dos que mais se orgulha. 20 anos depois, diria:

“Para mim, todo o álbum Hejira foi mesmo inspirado. Acho que muitas pessoas podiam ter escrito «Chelsea Morning», mas não acho que mais ninguém podia ter escrito as canções de Hejira.”

Este êxodo interior teve raízes durante a digressão Rolling Thunder Revue de Bob Dylan, que também inspirou canções que surgiriam em The Hissing of Summer Lawns. Nesta tournée lendária, Mitchell começou a interpretar «Coyote», pelo menos, no camarim. A canção refere-se diretamente a um caso que Mitchell teve com Sam Shepard. Mais tarde, dramaturgo, ator e escritor, Shepard juntou-se ao “bando” de Dylan com a missão de redigir um argumento para um hipotético filme, editado com o nome de Renaldo and Clara.

CAMINHOS, ÊXODOS E PATINS

O poeta Allen Ginsberg também se juntou aos nómadas – uma espécie de circo ambulante em que os artistas em cartaz iam mudando. Joan Baez, Roger McGuinn dos The Byrds, Ronee Blakley e Mick Ronson foram outros dos participantes.

Mitchell juntou-se à Rolling Thunder Revue mais por curiosidade e enquanto observadora, a meio da digressão, participando nalguns concertos, mas não permitiu que as suas cenas surgissem no filme, por não gostar da sua aparência. Curiosamente, o realizador Larry Johnson reparou na rivalidade entre Mitchell, Baez e Blakely, chamando-lhe “a batalha das boinas”, já que as três a usavam, nesta fase. Joan Baez comportava-se como uma prima donna, sentindo-se “ameaçada” pelas outras duas cantoras.

Um ponto interessante é que, durante esta digressão, Bob Dylan defendeu Rubin “Hurricane” Carter, o pugilista negro condenado por triplo homicídio. Dylan compusera o tema «Hurricane» acusando o sistema de corrupção e racismo. Já Mitchell não foi literalmente na cantiga, e, ao falar com Carter, apercebeu-se que este era um oportunista de índole violenta, que se queria aproveitar de celebridades. Joni Mitchell foi mais astuta que Dylan, pois Carter, no dia seguinte a ser libertado, agrediu violentamente uma mulher.

A história do pugilista seria também adulterada e distorcida no filme The Hurricane, com Denzel Washington e realizado por Norman Jewison, sendo nomeado para os Óscares. Relato esta experiência pois contribuiu para a desconfiança com que Mitchell passou a encarar as causas “ditas” humanitárias e/ou políticas, não se envolvendo nelas.

Mitchell compunha enquanto participava na digressão, e duas canções seriam gravadas. A primeira, «Black Crow», foi gravada em Hejira, a segunda, «Don Juan’s Reckless Daughter», integraria o álbum homónimo, ainda que Mitchell se referisse às duas como inseparáveis.

O CORVO DOS ÍNDIOS

Com o fim prematuro da digressão de mês e meio, a relação de Mitchell com o baterista John Guerin também acabou. O plano original era prosseguir a tournée na Ásia e na Europa. A ideia foi abandonada. O concerto final foi em Madison, no Wisconsin, onde o fotógrafo da tournée, Joel Bernstein, explicou a Joni Mitchell o conceito que tivera para a capa de Blue, disco editado cinco anos antes.

“’Joni, ainda cá estão os camiões com o guarda-roupa, tenho as minhas câmaras, há neve, vamos fazer uma sessão de fotos, é a nossa hipótese. Imagino-te toda vestida de negro. Vamos ter de te arranjar uns patins de homem e terás de escolher uma roupa preta. Imagino a tua silhueta a contrastar com o branco da neve.’ E ela foi buscar a estola que enverga nas fotografias, fomos a uma loja de patins, pois não há patins negros para senhora, e fizemos a sessão no meio de uma tempestade de neve. Foi tal como imaginei anos antes, só que foi num lago em vez de um rio.”

Algumas das fotos foram usadas na capa de Hejira, editado em novembro de 1976. Numa delas, Mitchell surge como um corvo prestes a levantar voo, de braços estendidos. O simbolismo era importante. Segundo Bernstein, “ela apelidara a companhia editora das suas canções Crazy Crow Publishing e acabara de gravar «Black Crow», um tema novo. Foi uma imagem-chave, visualmente”.

Além disso, Mitchell assumira uma forte afinidade com a cultura e filosofia dos nativos americanos ou índios, encarando o corvo como um totem, um animal ou ave que, segundo a cultura índia, tem um significado especial para cada indivíduo, tanto como protetor como fonte de poder e sabedoria.

A icónica foto da capa, com a boina, não foi captada por Bernstein, mas por Norman Seef, ainda que as roupas sejam as mesmas. O resto é uma colagem da sessão do Wisconsin misturada com fotos de uma estrada no deserto e um céu nublado. Tudo foi misturado pela própria Joni Mitchell que fotografou, ampliou e reduziu certos pormenores, procurando manter tudo coeso.  

Bernstein foi novamente requisitado por Joni para fotografias. Levou-o a um ringue de patinagem. “Ela era fascinada pelo patinador [canadiano] Toller Cranston. Fomos ver um espetáculo dele em Buffalo e ela decidiu que queria alugar um ringue para que eu o fotografasse no ringue. Assim, o patinador é ele, e a noiva da foto é uma referência ao vestido de noiva em «Song for Sharon».

Joni Mitchell escreveu «Song for Sharon» depois de um dia passado em Nova Iorque, em que foi com o fotógrafo a Staten Island comprar um mandolim. Terá sido uma das vezes em que, segundo a própria admitiu, compôs sob a influência da cocaína. Com cerca de oito minutos, o tema fala de planícies canadianas, cidades pequenas e grandes, e amores perdidos.  

Originalmente, o álbum chamava-se Travelling, só que a cantora encontrou a palavra “hejira” num dicionário, interessando-se pelo seu significado. Sinónimo de  “êxodo”, “migração” ou “quebrar de laços”, o termo é usado no Islão para descrever a fuga de Maomé à perseguição de que foi alvo no século VII, escapando de Meca e rumando a Medina, onde fundou a primeira comunidade muçulmana. Estas metáforas encontram-se em várias canções do álbum; temáticas como a partida, o voo ou a viagem.

ASSIM FALOU PASTORIUS

Outro elemento-chave em Hejira foi Jaco Pastorious, autêntico Jimi Hendrix do baixo, que conseguia fazer o instrumento falar. O músico faleceu prematuramente e em circunstâncias trágicas. Pastorius percebeu instintivamente que Mitchell pretendia ritmos espontâneos e adaptou-se, despertando, ao mesmo tempo, a criatividade da cantora e compositora. Pastorius não resistiu a graves ferimentos na cabeça após uma luta com um segurança, na Florida, em 1987, com apenas 35 anos.

Segundo a cantora: “Ele foi a única pessoa que jamais conheci que achava Nietzsche divertido. Costumava rir-se de Assim Falava Zarathustra. Jaco era um bom amigo e eu gostava da sua companhia.”

Por genial que fosse, Pastorius, que deixou o seu estilo peculiar em Hejira, queria sempre tornar o seu trabalho mais audível na mistura e, com Mitchell a dar-lhe alguma liberdade para isso, pensou-se que era o seu mais recente namorado.

Não era comum, nesta época, que músicos da área do jazz ou fusão colaborassem com músicos rock, pelo menos, a longo prazo. Pastorius foi uma execeção, já que participou em Hejira e nos três álbuns seguintes de Mitchell. O baixista disse, numa entrevista em 1978:

“Eu não conhecia a música de Joni, mas foi realmente divertido entrar no projeto com essa ignorância, e dar um contributo. Foi uma boa combinação, especialmente no álbum Hejira. O tema-título, desse gosto mesmo. Julgo que foi a primeira coisa que toquei com ela.”

O baixista abriu horizontes a Mitchell; não impôs as suas influências jazz, estendeu um tapete, digamos, para essa sonoridade, o que se nota em Hejira, Don Juan’s Reckless Daughter e Shadows and Light. Porém, Jaco Pastorius tinha problemas com estupefacientes e certas instabilidades mentais que se acentuaram com a fama. Terá sido um dos fatores que fizeram Mitchell afastar-se ainda mais da indústria musical e seguir um rumo experimental, quer o público gostasse ou não.

Após a morte de Jaco Pastorius, a sua viúva, Ingrid, recordou a colaboração entre os dois, sublinhando que a influência foi mútua:

“Penso que a experiência com Joni foi muito positiva. Ela abriu-lhe muitas portas, a nível de carreira e a nível musical. Jaco era muito ‘cru’, nem tinha formação musical. Só muito mais tarde aprendeu a ler música… julgo que Joni foi uma das pessoas mais influentes na sua vida, sem dúvida.”

A INFLUÊNCIA DE GEORGIA O’KEEFFE

Mitchell nunca foi de grandes revelações, mas esta época foi distintamente uma em que se encontrava perdida e se julgava incapaz de uma vida convencional ou doméstica. Surge então “Amelia”, voando literalmente pelos céus. Visto que – a intrépida mas pouco escrupulosa e ambiciosa – Amelia Earhart se despenhou e nunca foi encontrada, o ponto de vista de Joni não será otimista, o que contrasta ironicamente com a beleza da melodia.

«Amelia» tem pouco de biográfico, é sobretudo uma canção metafórica. Pode também haver um paralelo com a intenção de desbravar os céus, em proveito próprio ou por fulgor íntimo? É um contraste interessante e objeto de várias interpretações, embora ache, pessoalmente, e parece óbvio, que Mitchell se baseia no “mito de Amelia Earhart” e na sua viagem de Ícaro, que, voando muito perto do Sol com asas de cera, se despenhou no mar Egeu. Forte metáfora para tantas vidas.

Outra pessoa que inspirou Hejira foi Georgia Totto O’Keeffe, a pintora que Mitchell viria a procurar na sua propriedade, terreno que a artista comprara em 1945, passando três anos a restaurá-la. O’Keeffe pintou a paisagem circundante, a casa e as imagens tipicamente americanas de crânios de gado, enquadradas pela vastidão da América.

Joni Mitchell levava consigo alguns presentes, incluindo uma cópia de Hejira, desenhos seus e uma nota escrita à mão: “Quero que fique com este livro, é uma coleção das dores do crescimento. O trabalho que contém não amadureceu completamente. Ainda assim, quero que fique com ele, pelo respeito que lhe tenho, e pela admiração e identificação com alguns elementos do seu espírito criativo.”

Especula-se que Joni Mitchell se terá identificado com o auto-exílio de O’Keeffe. A pintora aceitava projetos por encomenda e trabalhava em obras para o público, demonstrando autoritarismo invulgar para uma artista do sexo feminino. A sua atitude despoletou o reconhecimento de O’Keeffe como pioneira artística e social. Além disso, era amante (descarada) de Alfred Stieglitz, fotógrafo casado e com filhos. Ambas pareciam ter algo em comum, colocar a evolução criativa primeiro, os homens em segundo.

Nesta peregrinação, Mitchell não encontrou a pintora, mas seria mais tarde convidada por ela para se encontrarem, noutra casa que O’Keeffe partilhava com um companheiro mais jovem, Juan, que, por acaso, era grande fã da cantora.

DESAGUANDO NOS BLUES

«Furry Sings the Blues» foi inspirado por Furry Lewis, lenda dos blues, que Mitchell conheceu quando foi a Beale Street, em Memphis, zona afamada por ser o centro dos blues. Era, na época, um bairro degradado, prestes a ser demolido. Hoje é uma zona histórica, restaurada e turística. Na época em que Mitchell lá esteve, havia lojas de penhores e o dono de uma delas reconheceu-a:

“Olhou para mim e perguntou, ‘você é a Joni Mitchell?’ Pensei que culturalmente aquilo era impossível. O homem não podia saber o meu nome.” Joni sabia que Furry Lewis vivia em Memphis e disse-o ao lojista. Este respondeu, “claro, ele é meu amigo. Venha ter cá esta noite e vamos visitá-lo. Traga uma garrafa de Jack Daniels e um maço de cigarros Pall Mall”.

De acordo com Mitchell, “Furry tinha 80 e tal anos… e estava senil. Vivia numa barraca num gueto. Foi uma visita agradável até que eu lhe disse, tentando aludir a alguma coisa que tivéssemos em comum, ‘também toco com acordes abertos’. As pessoas deviam ridicularizá-lo por isso ou coisa que o valha, porque ele ergueu-se na cama e disse, ‘também toco em afinação espanhola!’ Muito defensivo. De alguma forma, insultei-o. Daí em diante, as coisas pioraram. Ele apenas disse, ‘não gosto dela’.”

Mitchell tornou o encontro numa canção, incluindo os aspetos desagradáveis. Furry não gostou e disse à Rolling Stone que Mitchell não deveria ter usado o seu nome sem o consultar primeiro. “Ela queria saber sobre os velhos tempos, e disse-lhe como era. E ela põe tudo num disco, usando o meu nome e sem me pagar nada!”

A verdade é que, quando Furry Lewis faleceu, em 1981, o tema chamou a atenção de quem nunca ouvira falar dele. E, 20 anos depois, Mitchell disse que compor essa canção tinha sido uma das suas experiências criativas mais felizes, musicalmente. “Quando o segundo verso surgiu, foi empolgante, pois a canção foi toda composta de seguida.”

O manager de Joni nesta altura, Elliot Roberts, negou que Furry Lewis tivesse sido “usado” de alguma forma. “Ela só refere que Furry canta os blues, o resto é sobre a vizinhança. Ela gostou de o conhecer e escreveu sobre as suas impressões. Realmente, ele disse que não gostava dela, mas não lhe podemos pagar royalties por isso. Não pago a todos os que dizem que não gostam de mim. Ia à falência.”

De certo modo, Hejira foi concebido ao estilo do músico de blues errante. Ou seja, como não podia levar muita bagagem no carro, Mitchell levou a guitarra, pelo que não há canções baseadas em piano no álbum. Não será muito original recordar a velha ideia de que conta mais a viagem que o destino, mas Hejira descreve essa jornada.

O álbum, com a sua complexidade e sons de jazz, foi arriscado na carreira de Mitchell, sendo recebido com alguma perplexidade. Por exemplo, um crítico da High Fidelity, Sam Sutherland escreveu: “Hejira é um risco para Joni Mitchell, mesmo surgindo no seguimento da sua ampla aceitação internacional, já que a intensidade contida destas novas interpretações exigem muito mais do seu público do que a toada romântica de Court and Spark, tão atrativa para programadores de rádio como para fãs já assegurados. Mas é um risco bem corrido.”

Mitchell elevava a fasquia, o que foi também assinalado por Tim Lott na Sounds: “A um nível comercial, este é manifestamente o álbum menos ‘instantâneo’ que ela alguma vez gravou. Mas o modo como os componentes são inseridos e retirados sem exageros é precisamente o que torna Mitchell única no seu génio como compositora.”

De facto, Hejira é um álbum complexo, mas acessível para quem não gosta de jazz, porque, tal como Lott sugere, o talento de Mitchell não se deixa enredar em estilos. A compositora tem o seu próprio estilo. Basta ouvir o álbum, 40 anos depois. Não soa datado nem a jazz. Soa a Joni Mitchell.   

David Furtado

Comentários:

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.