Mikey and Nicky de Elaine May: Os três estarolas


Mikey and Nicky (1976) resultou do encontro de três talentos, a realizadora Elaine May, Peter Falk e John Cassavetes. Pelo meio, Falk foi mordido pela realizadora, John deu um sermão a Falk em cima de uma mesa do refeitório da Paramount, esbofeteou May; a realizadora roubou alegadamente duas bobinas ao estúdio, o qual chamou a polícia. Em suma, que grande filme é Mikey and Nicky. É a história de dois gangsters, já me esquecia…

Ao contrário de outros papéis de John Cassavetes, ‘Nicky Godalin’ foi um trabalho onde este se sentiu em casa. Era apenas natural que o ator/realizador colaborasse com a atriz/realizadora. Eram ambos conhecidos por recorrerem à improvisação durante os anos 50. No caso de May, pelo seu trabalho com o grupo de teatro improvisado Compass Players. Elaine May formara também uma dupla humorística com Mike Nichols, talvez a mais influente do século XX, que atingiu o auge em 1960, na Broadway, onde estiveram em cena nove meses. O sentido de humor de John Cassavetes era igualmente subversivo.

Durante uma cena, Peter Falk teve dificuldades em “recapturar” as emoções. Parte desta sequência, em que uma rapariga morde o lábio de ‘Mikey’ já tinha sido filmada. A continuação foi filmada 10 dias depois. “Achei que o primeiro take deixou muito a desejar, o que não admirava”, comenta Peter Falk. O assistente de realização gritou, “silêncio, “câmara”… “Estávamos todos à espera do ‘ação’ quando Elaine disse, ‘só um minuto, quero falar com o Peter um instante.’”

O ator confessa que gostava de May e se conheciam há anos. “Ela é muito esperta, e eu queria ouvir o que me iria dizer. Aproximou-se de mim, mas, como havia uma equipa em redor, quase sussurrou, ‘quero recordar-te uma coisa’. Percebi que queria confidenciar-me algo, por isso, inclinei-me. Estávamos muito perto, com os braços em redor da cintura um do outro, as cabeças a tocarem, mas antes de ouvir as palavras dela, senti qualquer coisa, não sei bem o quê. Fiquei confundido durante uma fração de segundo. Depois, tive quase a certeza de que tinham sido os dentes de Elaine no meu lábio. De início, pensei que era alguma brincadeira. Mas começou-me a magoar e eu ia empurrá-la quando ela me mordeu com força, selvaticamente, o lábio. E estava eu a gritar quando ouvi a voz suave de Elaine a dizer ao cameraman, ‘ação’.”

“Bom, essa cena até… cantou. Que take! Adorei-o. Foi mesmo bom. E, quando Elaine gritou, ‘corta’, eu ainda não compreendera bem o que se passara. Só me lembro de me sentir eufórico. E de respeitar e admirar o gesto de Elaine. É a isto que chamo uma realizadora do ‘Hall of Fame’. Obrigado, Miss May, acho-a, e é verdade, uma pessoa unicamente engenhosa.”

Com John Cassavetes, foi um pouco diferente. Joyce Van Patten disse que uma breve cena demorou uma semana, com três câmaras a filmar. Nesta sequência, a atriz é esbofeteada por Cassavetes. Como o ator teve de o fazer take após take, mostrou-se preocupado, pois não queria magoá-la. Foi ter com Elaine May, que lhe perguntou, “com que força lhe estás a bater? Mostra-me”. John pregou-lhe um estalo que fez May cambalear. Recompondo-se, a realizadora aconselhou: “Talvez com um pouco mais de calma.”

“SIM, EU FAÇO-O”

Em 1962, May separou-se de Nichols – este tornou-se um encenador de sucesso e, posteriormente, um realizador aclamado, vencendo vários Tonys e o Óscar por The Graduate. May também se dedicou ao teatro, representou pequenos papéis em cinema e foi argumentista e realizadora de dois filmes, A New Leaf (1971), onde participa como atriz ao lado de Walter Matthau e The Heartbreak Kid (1972). (Este último sofreu um remake decadente com o escabroso Ben Stiller em 2007.)

Recorde-se que May, enquanto argumentista, não foi creditada pelo seu trabalho de “script doctor” [afinar guiões] em filmes como Reds (1981), Tootsie (1982), Labyrinth (1986) e Dangerous Minds (1995). Escreveu e realizou Ishtar em 1987, obra conhecida por ter sido um grande fracasso apesar de não ser tão mau quanto se pensa.

Mikey and Nicky era um projeto em que May começara a trabalhar em 1954, quando se juntou à Compass Players. Na época, era uma peça teatral. Em 1967, Elaine May contracena com Peter Falk em Luv e relata a ideia ao ator: “Ela contou-me a história durante uma noite. Baseava-se em pessoas verídicas num bairro verídico, pessoas próximas dela, que conhecera quando criança. Tinha recordações muito vincadas disso, o que lhe provocou a necessidade de escrever. Achei que era uma história dos diabos.”

Falk descreve assim o argumento: “Cassavetes interpretou ‘Nicky’, eu sou ‘Mikey’, e somos ambos gangsters de terceira. Fazemos apostas, escondemos artigos roubados, controlamos o monopólio das slot machines. Temos uma relação emocional conturbada. ‘Mikey’ é emocionalmente inibido e gostaria de ser mais expansivo. Gostaria de ser como ‘Nicky’, que atrai as pessoas. É divertido e as mulheres adoram-no. ‘Mikey’ gostaria que fossem grandes amigos, mas está preocupado pois não sabe se ‘Nicky’ faria por ele o que ele faria por ‘Nicky’, caso estivessem em sarilhos, até porque ‘Nick’ tem um impulso psicopata. Seduz as pessoas mas não consegue evitar lixá-las. Por isso, ‘Mikey’ está dividido entre passar tempo com ‘Nick’ e ter vontade de o estrangular com as próprias mãos.”

Em 1970, John Cassavetes tomou conhecimento de Mikey and Nicky, através de Peter Falk:

“Elaine e eu achámos que John seria fantástico para o filme, portanto marquei um encontro com ele no refeitório da Paramount. Disse-lhe, ‘a Elaine escreveu o argumento, e estou aqui para te perguntar se estás interessado’. Ele respondeu, ‘eu faço-o’. Eu disse, ‘John… isto é uma coisa séria, ela trabalhou muito neste guião, e isto é muito importante para mim, portanto…’ E ele repetiu, ‘eu faço-o’. E eu disse, ‘não… por que não fazes umas perguntas inteligentes sobre o projeto, o papel… isso é demasiado rápido, dizeres que o fazes’.”

“Ele começou a falar com bastante calma. Mas, quando acabou, estava em cima da mesa. Não posso dizer-vos ao certo o que ele disse… [risos] Mas, no essencial, foi [num tom de troça] ‘achas que sou como tu, que estou preocupado se vai ser um sucesso? Achas que estou preocupado se a minha carreira vai avançar com isto? Achas que eu penso que… blá, blá, blá, por ali fora. E acabou por dizer, ‘tu entras?’ ‘Sim.’ ‘Ela escreveu-o?’ ‘Sim.’ ‘Ela vai realizar?’ ‘Sim.’ ‘Que mais tenho eu de saber?!’ E eu pensei, ‘caramba, mas que raio de tipo’… Depois sentámo-nos e prosseguimos o encontro. Mas acho que só foi 20 minutos depois… e ele diz-me, ‘olha, tenho um guião. É sobre três tipos. Quero ser um dos tipos, quero que o Ben Gazzara seja o outro e quero que tu sejas o terceiro. Estás interessado?’ [Risos.] Eu tive de dizer, ‘sim, eu faço-o…’”

Mikey and Nicky era uma oportunidade de trabalhar com Falk e May. Cassavetes estava também interessado no salário, pois dependia, em grande parte, de papéis como ator para financiar os seus próprios filmes.

Já tinham passado 16 anos. May não desistia, tentando arranjar as verbas necessárias para o filme. O sucesso de A New Leaf e, especialmente, de The Heartbreak Kid facilitaram a situação. Tornara-se entretanto amiga de John Cassavetes, o que não custa a crer, visto que partilhavam um espírito de aventura idêntico face à Sétima Arte, além de serem dois mavericks.

No final de 1973 e início de 1974, John Cassavetes encontrava-se a editar laboriosamente A Woman Under the Influence, esquematizando o modo de o distribuir. Foi assim uma forma de se distrair um pouco. O trio, May, Falk e Cassavetes, trabalhou no guião de May, ainda que seja ela a única argumentista creditada. Segundo Frank Yablans, um chefe da Paramount, o input de Cassavetes terá sido mais significativo do que aparenta, até porque há algumas semelhanças flagrantes com o filme de John, The Killing of a Chinese Bookie.

O colaborador de longa data de Cassavetes, Al Ruban, explica: “John abordou-me, dizendo que Elaine queria que eu produzisse o filme. Disse-me para dizer a Ed Scherick, [produtor de The Heartbreak Kid e executivo da Paramount] que não o queríamos nas filmagens.” Ruban assim fez, Scherick acedeu, mas acabaram ambos fora do projeto, uma vez que Michael Hausman, produtor que colaborara com May em The Heartbreak Kid foi convocado.

Elaine May, conhecida pelo seu perfecionismo quase neurótico, fora incapaz de alterar uma palavra do guião de The Heartbreak Kid, escrito pelo conceituado Neil Simon. De acordo com Hausman, “aqui o caso era diferente. Ela escrevera o guião. Estava sempre a debater com Peter e John. Foi um esforço coletivo e discutiu-se muito as coisas. Para eles, era como um filme pessoal e privado. Ela admirava Cassavetes como cineasta e não paravam de debater o modo de o filmar”.

Hausman acrescenta que May ambicionava fazer Mikey and Nicky há tanto tempo “que não se conseguia decidir por uma ideia”. Há 40 anos, no verão de 1973, a rodagem começou em Filadélfia, e May insistiu em filmar durante a noite, em sequência, durante dois meses.

Depois de algumas semanas em Filadélfia, Falk teve de começar a rodagem da nova temporada de Columbo. Durante este interregno, May apercebeu-se que filmara mais de 457.200 metros de película. Para se ter uma ideia, “só” 137,150 metros foram filmados em E Tudo o Vento Levou… uma obra de quatro horas.

Face a semelhante excesso, a Paramount ordenou que May filmasse o restante na baixa de Los Angeles para poupar dinheiro. Seguiram-se mais 50 dias em Los Angeles… A realizadora não explicava ao certo o que queria ou achava, apenas em termos vagos. Ned Beatty recorda-se que tinham filmado cerca de 2/3 quando “eles puxaram a ficha da tomada”. Beatty já cortara o cabelo e, sendo novamente convocado para as filmagens em L.A., teve de arranjar uma peruca.

Por não ter tempo, May pediu a Cassavetes que dirigisse a segunda unidade de filmagens, pelo que John filmou Beatty quando este conduz o automóvel à procura de ‘Mikey’. Enfiado dentro do carro com uma Arriflex, Cassavetes filmou avidamente Beatty que, a certa altura, rodou a cabeça e ia batendo com ela na câmara. “John, que raio estás a fazer?” “Está ótimo, pá. Excelente. Nem vais acreditar”, respondeu Cassavetes, explicando que experimentava uma lente macro ganha num jogo de póquer. “Devia estar a filmar os pêlos do meu nariz”, comentou Beatty, pouco agradado.

Ao vermos o filme, nota-se claramente que May deu liberdade (excessiva, segundo as críticas negativas) a Falk e Cassavetes. Ainda por cima, o filme é essencialmente composto por cenas em que os dois interagem e desenrola-se durante a noite.

Elaine May começou a editar o filme nas instalações da Paramount. Houve outro episódio rocambolesco. Quando Elaine May fazia a montagem, o estúdio não parava de insistir que a realizadora entregasse o filme. Duas bobinas do negativo desapareceram misteriosamente da sala de montagem. A Paramount chamou a polícia, mas a realizadora negou qualquer envolvimento. Circulou, no entanto, o rumor de que May pedira à sua psicanalista que escondesse as bobinas na garagem desta, no Connecticut!

May mudou-se para uma espécie de “base” numa suite do hotel Sunset Marquis, em West Hollywood. Só mais de um ano e meio depois entregou o filme à Paramount. Até o perfecionista John Cassavetes perdeu a paciência com May. O crítico de cinema Jay Cocks gracejou: “O filme era demasiado doido, até para John, o que diz alguma coisa.”

A Paramount reuniu o material existente (excetuando as duas bobinas) e organizou uma estreia apressada no final de 1976. Um vice-presidente da Paramount achou que não era um filme natalício. Até a esposa de Walter Matthau, Carol, que interpreta a namorada de ‘Nicky’ comentou: “Seria um bom filme, se estivéssemos no comboio entre Vladivostok e Moscovo.”

Mikey and Nicky obteve críticas positivas mas cautelosas. Judith Christ achou o desfecho “um alívio”, após o tédio. Frank Rich considerou que devia ser “enterrado e esquecido”. Ainda não terminara a saga. Cerca de um ano depois, Elaine May conseguiu colocar em circulação a sua versão com montagem diferente, o que parece conferir veracidade à tese do roubo. Foi esta a versão lançada em DVD em 2004, numa edição especial.

Peter Falk adorou a experiência: “Sabe-se que Elaine tem um talento único e todos a incluem num grupo de meia dúzia de vozes genuinamente originais no negócio. E é também uma grande realizadora.”

O problema é que o negócio não gosta de grandes “originalidades”. Prefere dólares.

David Furtado

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