Columbo 2: O caso do ator exigente


O início de Columbo não foi fácil. Peter Falk, perfecionista e dedicado, depressa entrou em rota de colisão com a Universal e os argumentistas. Mas não com os atores, impressionados perante o seu profissionalismo. O sucesso do episódio-piloto despoletou sete histórias, e a primeira a ser exibida foi realizada por um jovem desconhecido chamado Steven Spielberg.

Columbo, devido ao seu conceito, é uma série com muitas falas”, assinala Richard Levinson. “Há muitas pessoas a falarem em salas. E, se vamos pôr muita gente a falar em salas, é melhor mudá-las. Em «Ransom for a Dead Man», pusemos Falk num avião. Isso foi bastante inovador, pois ele estava obviamente enjoado, mas podia prosseguir o interrogatório.” 

Neste primeiro episódio-piloto oficial, foram acrescentados mais alguns detalhes, como o facto de o crime ser filmado de modo estilizado. A entrada de Columbo também se dá de modo diferente, como descreve Peter Falk: “Não sou grande fã de mistérios, mas, quando era miúdo, lia o Sherlock Holmes, que muito me impressionou. Ele aparecia e todos se viravam para ele em busca da resposta. Neste episódio, achei importante que ninguém se virasse para mim, quando entro. Como se fosse alguém que andava por ali. Os homens do FBI faziam o seu trabalho, e eu nada sabia, excetuando talvez o nome de determinada rua. Quis ser ignorado.”

“Isso colocou-me um problema”, continua Peter Falk. “Não podia interromper, já que havia pessoas importantes por ali. A abordagem mais célebre é a do grande detetive que chega e todos querem saber a sua opinião. Ninguém queria saber a opinião deste tipo. Não há pretensiosismos. Esperaríamos algo muito diferente de um grande detetive. Todos falam sobre um grande rapto, e ele anda à procura da caneta que perdeu. É divertido mas também humaniza. Não é apenas humor. Diz algo sobre o personagem. Estabelece-se um contraste entre a sua posição e a realidade. Isso fez com que as pessoas gostassem dele. Ninguém o vai levar a sério.”

Neste episódio, Columbo enfrenta uma calculista e brilhante advogada, interpretada por Lee Grant, atriz nomeada para um Emmy por esta interpretação. “O papel surgiu na altura em que fiz uma série de bons telefilmes”, recorda Grant, que mais tarde se tornaria realizadora. “Foi uma boa experiência, mas eu não sabia que estavam a pensar numa série. Foi mais um bom guião. Pensei apenas na ideia de trabalhar com Peter Falk. Eu já trabalhara muito com Peter, pelo que foi uma colaboração fácil e divertida.”

Geralmente, o vilão passa por uma fase de arrogância extrema, gerando-se diálogos como este, entre a advogada e o tenente:

– Sabe, Columbo, quase é possível gostar de si, de uma forma desprezível. Talvez seja a forma como chega aqui, com o seu saco de truques…
– Eu, truques?
– A humildade, o aparente alheamento, as piadas sobre a família, a mulher…
– A sério?
– Sim, Tenente Columbo, sempre a vacilar e a tropeçar. Mas é a jugular que quer apanhar. E imagino que seja bem-sucedido, a maior parte das vezes.
– Agradeço o elogio, Sra. Williams, especialmente vindo de si.

Mas Columbo é muitas vezes firme e pragmático. Não é sonso. Certos comportamentos seus destinam-se a trazer ao de cima pormenores ou passos em falso do assassino, que possam ajudar a solucionar o mistério. Hoje em dia, o “método Columbo” é ensinado nalgumas Academias de Polícia americanas. É um mérito de Peter Falk, que, tendo de recorrer aos maneirismos do personagem, não os torna maçadores. Por outro lado, os autores dos guiões certificaram-se de que lhe arranjavam oponentes à altura, neste caso, uma advogada, com a típica facilidade de argumentação.

Lee Grant prossegue:

“Adoro o formato do mistério e adorei a abertura. Que maneira de começar! Não havia mistério. Bang! Sabemos logo que tipo de personagem ela é. O mistério não residia em duvidarmos se era ela, mas sim, em ‘será que a podem apanhar?’”

Após o sucesso de «Ransom for a Dead Man», em abril de 1971, Richard Levinson e William Link foram convidados para produzir a série. “Ainda hoje não sei por que concordámos”, comentou Link. O outro dos criadores, Levinson, afirmou que foi o trabalho mais árduo que alguma vez realizou. “Eu chegava a casa e quase desmaiava.”

Como é habitual, quando um episódio-piloto faz sucesso, a cadeia televisiva apressa-se a fazer mudanças no teor da série. A NBC ainda não estava convencida! Os executivos não gostavam que o assassino fosse revelado de início, achavam que Columbo devia ter um ajudante, queriam que Peter Falk entrasse em cena mais cedo, exigiam mais ação; achavam que havia demasiados diálogos, não lhes agradava que Columbo falasse da esposa quando esta nunca aparecia, e queriam que o tenente tivesse encontros românticos esporádicos, alegando que isso agradava aos espectadores. Em suma, tudo sugestões que seriam catastróficas para Columbo.

Face a tantas bazófias, os criadores ameaçaram desistir, e a NBC teve de acatar. Primeiro, Levinson e Link apressaram-se a escolher uma equipa criativa. Decidiram contratar Steven Bochco, um jovem e promissor argumentista para editar as histórias. O futuro criador de A Balada de Hill Street escreveu três dos sete episódios da primeira temporada sob a supervisão de Levinson e Link, que apenas assinaram um dos guiões.

A fórmula de Columbo – e todos os seus elementos, desde o crime perfeito aos brilhantes raciocínios do investigador – não atraiu muitos argumentistas, por ser demasiado difícil. “Não havia muitos que o conseguissem fazer”, explica Levinson. Ao longo de 45 episódios, Levinson e Link escreveram dois argumentos e idealizaram as histórias de outros cinco, Bochco foi autor ou coautor de seis, Jackson Gillis (especialista em mistérios e que já concebera vários para Perry Mason), trabalhou em sete e aprimorou outros; e Peter S. Fischer foi o autor de cinco. Este núcleo de escritores poliu o formato de Columbo

O PROBLEMÁTICO FALK

Como se imaginar mistérios não fosse suficiente para dar que fazer a Levinson e Link, Peter Falk provou ser um problema. Em Hollywood, tinha a fama de ser um ator exigente. Segundo Richard Irving, “ele era difícil por ser perfecionista. Nunca queria fazer os compromissos necessários em televisão. Tínhamos de nos preocupar com orçamentos e datas-limite, mas ele não queria saber. Acabávamos sempre por ultrapassar orçamentos e ir para além dos prazos. Ele foi excelente no papel, mas devia dedicar-se ao cinema, era um risco em TV”.

Falk era uma dor de cabeça para os executivos, mas não para os atores com quem contracenava, muitos deles, caras conhecidas do cinema e da TV, como Leonard Nimoy, Leslie Nielsen, William Shatner, John Cassavetes, Gena Rowlands ou Ray Milland. “Foi maravilhoso trabalhar com ele”, recorda George Hamilton, um dos “assassinos” num episódio.

“Ele esforçava-se a todos os níveis para que a série fosse boa. E, se algum ator se deparava com dificuldades, ele era do género de ir ter com ele e dizer, ‘vamos trabalhar isto os dois’. Não conheço muitos atores que se deem a esse trabalho ou tenham tempo para tal.”

Ricardo Montalban também o elogiou: “Peter é um ator consumado e de um profissionalismo extremo… é o sonho de qualquer ator, muito generoso e compassivo.” Patrick McGoohan revela: “Peter trabalhou imenso para manter os padrões da série. Quando os scripts não estavam à sua altura, enfurecia-se. Lutou a todo o custo pela qualidade.” Hector Elizondo acrescenta: “É um homem apaixonado. Preocupa-se. Na televisão, as pessoas tendem a ficar embaraçadas com isso. É muito reconfortante encontrarmos alguém com uma paixão genuína pela qualidade. É o ator mais trabalhador com quem já colaborei. Trabalha constantemente o personagem. Nos intervalos, fartávamo-nos de rir.”

O lendário Vincent Price comentou: 

“A sua técnica de trabalho é verdadeiramente extraordinária. E totalmente legítima. Ele não conseguia decidir o seu diálogo antes de interagir com os colegas envolvidos na cena, o que faz todo o sentido. Não faz sentido, filmar sem se ter ensaiado primeiro. Não se faz no teatro e no cinema, mas, na TV, somos controlados e pressionados, e está sempre a acontecer.”

Esta atitude louvável de Falk deixou Levinson e Link no meio de um fogo cruzado, especialmente quando o ator, furioso, apelidou a Universal de “fábrica de salsichas”. Houve também discussões entre os criadores de Columbo e o ator, apesar do enorme respeito mútuo. Porém, ambos achavam que Peter Falk chegou “desconfiado” em relação à série, aos estúdios, à NBC e até aos produtores.

“Sentíamos um enorme afeto por ele”, relembra Richard Levinson. “Para começar, é uma pessoa de quem se gosta naturalmente, é encantador. Por outro lado, é muito inteligente. E teve um grande papel no que se tornou um enorme êxito. Por isso, mesmo quando lutávamos com ele, não deixávamos de gostar dele. O problema é que estávamos demasiado ocupados para lidar com tais questões e fazer a vontade à estrela, o que, muitas vezes, é necessário. Depois, ele começou a receber rascunhos de argumentos através de um amigo. Odiava-os e não tinha suficiente experiência em TV para saber que um rascunho de um episódio não é coisa que se mostre à estrela de uma série. É apenas um ponto de partida.”

EXECUTIVOS EM FUGA…

Estes fatores provocaram um jogo de intrigas na Universal. Levinson e Link ordenaram que Falk fosse excluído da componente da escrita e da visualização diária das filmagens. Chegaram a escrever cenas para o manterem ocupado. O duo criativo chegou também a ponto de pedir-lhe que escrevesse um episódio só para lhe dar que fazer, como relata Richard Levinson: 

“Fizemos isso por dois motivos. Primeiro, para ele parar de nos moer a paciência. Sabem, em muitos aspetos, ele é igual a Columbo. E fizemo-lo para que ele se apercebesse de como era difícil escrever aqueles guiões. Por isso, ele foi para casa e escreveu dois atos, que até eram excelentes. E disse, ‘cheguei até aqui, como é que faço o final?’ Bill e eu sorrimos e dissemos-lhe em uníssono, ‘ahhhh!’.” 

Apesar destas desavenças, a dupla nunca duvidou do empenho de Peter no papel de Columbo e nunca se ofendeu. “Mas havia tremendas batalhas”, sublinha Levinson. “Quando ele não estava a discutir, era encantador. Gostávamos tanto dele que até tínhamos vontade de fazer o que ele pretendia!”

Cada episódio de Columbo devia demorar 12 dias a filmar… só que o prazo começou a “esticar”. Quando chegou aos 14 dias, a Universal achou que tinha um problema em mãos. A reação de Peter Falk foi previsível e, perante os seus acessos de fúria, os executivos fugiam. Curiosamente, isto fez com que os estúdios dessem mais tempo a Levinson e Link para aprimorarem a escrita dos episódios.

Levinson admite que, de certa forma, usaram a intransigência de Falk para conseguirem mais espaço de manobra. “Se queríamos melhorar a qualidade de um episódio e o prazo se esgotava, dizíamos a Peter, ‘força, dá rédea solta a tudo isso, não nos importamos’.”

No meio destas guerras, a equipa conseguiu terminar seis episódios. Exaustos, concordaram em conceber um sétimo, mesmo a tempo de deixar Peter Falk livre para se concentrar na peça The Prisoner of Second Avenue, em cena na Broadway. O ator também realizou este último episódio.

Quando foi confrontado com estes comportamentos, Falk afirmou com um sorriso brincalhão: “Julgo que tenho essa reputação. Não sou tímido. Nem envergonhado. Acho que ninguém me acusaria disso.”

REUNIÃO DE CÚMPLICES

No outono de 1971, várias séries começaram, outras terminaram e, no meio, surgiu Columbo. O primeiro episódio a ser filmado foi «Death Lends a Hand» com Robert Culp como ator convidado, mas os produtores acharam que o segundo, «Murder by the Book» era superior e começaram com esse, pelo que foi exibido a 15 de setembro de 1971. Aqui, temos uma dupla de escritores famosos, autores de livros de mistério solucionados por uma genial detetive amadora, Mrs. Melville. Um dos sócios assassina o outro, criando o crime perfeito. Seria, de facto, um dos episódios mais bem conseguidos de toda a série. E o realizador era, nem mais nem menos, do que um jovem de 20 e tal anos chamado… Steven Spielberg.

Peter Falk aprovou a escolha do realizador, depois de ter visto o (pouco) trabalho que já concretizara. Spielberg tinha fama de ser um realizador “técnico” que não sabia lidar com atores. Num dos dias de filmagem, Steven telefonou aos criadores da série, pedindo-lhes que fossem até ao set, queixando-se de que ninguém falava com ele. O problema era o veterano diretor de fotografia Russ Metty (que colaborara com Orson Welles em A Sede do Mal). Este queria que Columbo, por ser uma série de mistério, fosse filmado em tonalidades sombrias, ao contrário da opção dos produtores, que pretendiam tons brilhantes.

Levinson e Link persuadiram Metty a seguir as indicações de Spielberg, por inexperiente que este fosse, o que contribuiu para a fotografia intrigante do episódio. O duo de escritores de mistério era uma espécie de private joke, uma referência à parceria Levinson/Link. Por exemplo, o livro autografado que um dos escritores oferece a uma admiradora, intitula-se Prescription: Murder, o primeiro argumento de Columbo escrito pelos dois e o primeiro telefilme com Peter Falk, exibido em 1968.

A inteligência e o engenho de Steven Spielberg, aliadas ao hábil argumento e à boa relação estabelecida entre Peter Falk e o ator Jack Cassidy, contribuíram para que «Murder by the Book», o primeiro episódio oficial, se tornasse num sucesso. Quando foi visualizado pela equipa, todos ficaram impressionados com a qualidade do trabalho. Cassidy seria convidado para mais duas participações na série, futuramente.

O episódio tornou-se o favorito de Steven Bochco, que o escreveu: “Adoro-o por diversos motivos. Foi o primeiro que escrevi, Steve fez um trabalho maravilhoso, Levinson e Link sabiam o estilo que queriam e contribuíram imenso, e gosto de escrever para Peter, o seu sentido de humor é idêntico ao meu.”

Como se ainda houvesse dúvidas… o público apercebeu-se de que Columbo era algo que nunca tinha surgido em televisão. Inovador e pioneiro, o tenente continuaria a demonstrar o seu brilhantismo durante os restantes episódios. Trabalhosa e esgotante, a primeira temporada da série reservava outras surpresas.

David Furtado

(Só mais uma coisa… continua no próximo artigo.)

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