Columbo: A génese de um sucesso


Todos conhecemos Columbo, e não havia pormenor da natureza humana que lhe escapasse ou enigma que o iludisse. Mas nem todos conhecem a origem do fenómeno a que a Time chamou, “a série policial mais influente, talvez a melhor e, certamente, a mais cativante”. Peter Falk deu vida à criação de Richard Levinson e William Link e tornou uma série com todos os ingredientes para ser um fracasso num êxito mundial inesperado e duradouro.

Columbo é tão obsessivo. É tão curioso. Acho que não se apercebe de como é bom. Estes pequenos problemas são tão interessantes para ele e incomodam-no tanto, que ele não sabe que se esqueceu de barbear nessa manhã. É um excêntrico genuíno.

Peter Falk

Foi um daqueles casamentos entre personagem e ator que acontecem uma vez na vida. São casos muito raros.

Richard Levinson, um dos criadores de Columbo.

A maioria dos detetives ou investigadores surgiu na literatura, desde Sherlock Holmes a Poirot, passando por Miss Marple, Maigret, Philip Marlowe e muitos outros, adaptados ao cinema e televisão. Columbo surgiu diretamente na TV. E não o devemos subestimar por isso. Ninguém deve subestimar esta figura de charuto, aparentemente desleixada e sem grandes cuidados com a imagem. De alvo de troça dos criminosos torna-se no seu pior pesadelo.

Criado por Richard Levinson e William Link, o detetive com a “gabardina mais famosa do mundo” tornou-se tão influente que fascinou várias gerações. Ao escrever um artigo sobre Columbo – a sua origem, curiosidades, evolução e impacto –, é difícil não dizer, “oh, é verdade, só mais uma coisa”, a frase com que o tenente tem por hábito massacrar o arrogante assassino. O trabalho de Peter Falk, numa série sem perseguições automobilísticas, espalhafato ou tiroteios, é a vitória do intelecto.

Pouco sabemos sobre Columbo, embora ele fale sobre a esposa; nunca surge no escritório ou em casa. Levinson e Link decidiram desde o começo que o Tenente Columbo seria, ele próprio, uma figura misteriosa.

Segundo Peter S. Fischer, um dos argumentistas, “ao ser mais pequeno do que a vida, ele torna-se maior do que a vida. Tem uma esposa, um carro, um cão e muitos familiares. Estragamos a mística, se dissermos muito mais do que isso. Não esqueçamos que a TV não é um meio orientado para desenvolvimento profundo de personagens. É isso que torna Columbo tão especial”.

O romancista e crítico literário Anthony Burgess referiu num artigo a enorme complexidade pressentida por detrás da fachada simples. O ator Vincent Price assinalou que “enquanto há grande simplicidade, há também uma grande complexidade. E ele era tão encantador. A maioria das séries não dá tanta importância ao personagem. Columbo é uma das poucas contribuições genuínas da TV para o mistério”.

O tenente e o seu envolvimento em enigmas intrincados devem muito à literatura policial inglesa, mas Columbo é de classe média, despretensioso, trabalhador. Steven Bochco, um dos criadores de A Balada de Hill Street e também argumentista de vários episódios de Columbo, afirma que “a série explorava, basicamente, a desconfiança que os ricos inspiram. O vilão era rico, bem-sucedido, arrogante, pelo que o jogo do gato e do rato que se seguia era muito aliciante para os espectadores”.

Peter Falk concorda que “as pessoas gostam de ver os ricos deitados abaixo, mas Columbo não tem nada contra eles. Ele lamenta prender o assassino e pensaria algo como, ‘ena, vejam este tipo, com uma casa fantástica, belas roupas. Fala bem. Teve uma boa educação. Que coisa terrível, ter feito isto’. Ocasionalmente, ele antipatiza com o assassino, mas, de modo geral, acho que o entristece”.

Fisher acrescenta que “vemos aqueles tipos todos com mansões na colina e pensamos, ‘os cabrões julgam-se acima da lei, julgam-se melhores do que nós, acham que se podem safar com tudo’. E aparecia um homenzinho que os puxava para o seu nível real”. Para Columbo, não há classes: Um assassino é um assassino.

A figura do detetive é uma parte importante da equação, mas tendo em conta as exigências da TV, criar um mistério de 71 minutos com refinamento e inteligência, antes de aparecer a mente brilhante que não deixa pontas soltas, foi outro dos triunfos de Columbo. É enganadoramente simples. A série tornou-se um sucesso junto de públicos apreciadores de mistérios e também do espectador casual, que pode (ou podia, na época) assistir com igual satisfação a um produto algo simplório como Os Anjos de Charlie.

O mundo televisivo rege-se por tantas diretivas incongruentes, que Rod Serling, o criador de A Quinta Dimensão, chamou à TV “o absurdo dos nossos tempos”. Como tal, Columbo não devia ter sido um sucesso, já que é quase desprovido de ação, violência, sexo; o personagem principal só faz a sua aparição cerca de 15 a 20 minutos depois do início, os argumentos são complexos e exigem atenção – por vezes, poder-se-ia tratar de uma peça de teatro. (O primeiro telefilme foi-o.) Quando o herói surge, não é nenhum sujeito musculoso e atraente, mas um polícia de carreira, humilde, baixo e sem preocupações com a indumentária…

“Por acaso não tem um lápis?… a minha mulher dá-me um todas as manhãs, mas eu perco-o sempre.” No meio dos procedimentos policiais comuns, enquanto se procura impressões digitais, etc., um homem aparentemente mais preocupado com outras matérias, a espirrar ou a pedir um fósforo para acender o omnipresente charuto, descobre o pormenor que não bate certo num crime perfeito.

O PRIMEIRO CASO DE COLUMBO

Richard Levinson e William Link conheceram-se no liceu, em Filadélfia, e eram já admiradores de mistério e suspense. Em 1959, começaram a vender os seus guiões para TV, e as suas histórias integrariam episódios de séries como O Fugitivo, Dr. Kildare e Alfred Hitchcock Apresenta. O duo achava que a TV podia e devia ter consciência social, para lá do mero entretenimento inofensivo. Assinaram, por exemplo, o argumento do telefilme A Execução do Soldado Slovik (1974) com Martin Sheen e, 10 anos depois, participariam na criação de Crime, Disse Ela, a série policial mais longa de sempre, tornando Angela Lansbury na atriz mais bem paga do mundo, na época.

Levinson faleceu em 1987, pondo fim a uma parceria de dois argumentistas que mais pareciam irmãos. Três anos antes de falecer, Levinson comentou assim a colaboração dos dois: “Se formos recordados por alguma coisa, podem escrever ‘Columbo’ nas nossas lápides.”

Columbo durou sete temporadas, mas como viria a integrar a The NBC Mystery Movie, em conjunto com outras séries, os episódios eram exibidos uma vez por mês, o que totalizou apenas 45 até 1978. (Antes de Falk retomar o personagem em 1989.) 

A dupla de criadores nem se recorda das origens do nome do detetive: “Pode ter vindo de um restaurante em Filadélfia chamado Palumbo ou de Colombo”, diz Levinson. Ninguém imagina outro ator que não Peter Falk como protagonista, mas, em 1960, num episódio chamado «Enough Rope», da série The Chevy Mystery Show, o ator Bert Freed foi o primeiro a interpretá-lo. “Essa série era muito desleixada”, criticou Levinson em 1986.

O ator principal (o assassino) irritou-se com o protagonismo inadvertido do polícia. Atentos a este pormenor, Levinson e Link desenvolveram a história de Prescription: Murdertornando-a numa peça de teatro protagonizada por Joseph Cotten, com Thomas Mitchell no papel de Columbo. Repetiu-se o fenómeno: O público adorava o polícia, enquanto os autores o consideravam uma personagem secundária na trama.

Depois de polirem o argumento, Levinson e Link atraíram a atenção de Don Siegel, que pretendia levá-lo ao grande ecrã. Siegel ocupa-se de outro projeto e surge a alternativa de tornar Prescription: Murder num telefilme. Thomas Mitchell falecera, entretanto, pelo que entrou em cena Peter Falk, um ator de prestígio, já nomeado para um Óscar por O Sindicato do Crime (1960), e que conhecia Levinson e Link socialmente. Falk, de 40 anos, interessou-se, mas a dupla de criadores achou-o demasiado jovem para o papel, preferindo Lee J. Cobb ou Bing Crosby.

Devido à indisponibilidade de Cobb e à recusa de Crosby, considerou-se a hipótese de contratar Peter Falk. O experiente Richard Irving, escolhido para a realização do telefilme Prescription: Murder, achou-o certo para o papel e convenceu Levinson e Link de que Peter Falk faria um trabalho razoável.

Falk surgiu como Columbo, pela primeira vez, em Prescription: Murder, estreado a 20 de fevereiro de 1968 na NBC. É a história de um psiquiatra rico e inteligente, que assassina a mulher com a cumplicidade da sua amante, uma atriz.

Os argumentistas estavam mais interessados em ver se tinham sido corrigidas falhas em anteriores versões do (excelente) argumento, mas ficaram espantados com a interpretação de Peter Falk.

Este telefilme continua a ser exibido como um filme à parte. A realização de Irving, o génio de Falk, a música de Dave Grusin e o guião engenhoso, tornaram-no num clássico. A fórmula já estava presente; e, embora o visual de Columbo se torne mais desleixado, o argumento já é um mistério às abertas – sabemos quem cometeu o crime. O modo como o tenente resolve o caso é o que nos prende a atenção, o que não era muito comum em séries televisivas.

Levison admite duas influências na criação do “detetive mais amado da TV”: “A humildade, retirámo-la de ‘Father Brown’ [personagem do romancista G. K. Chesterton]; o comportamento quase servil foi inspirado por ‘Petrovich’, de Crime e Castigo de Dostoiévski. Ele está sempre a dizer, ‘és muito mais inteligente do que eu, sou apenas um humilde funcionário público’.”

Contudo, muitas características foram ideia pelo ator. “Peter adicionou-lhe uma enorme polidez, farta-se de dizer ‘Sr.’ e ‘Sr.ª’. O tipo era humilde, mas Peter acentuou isso”, recorda Levinson. William Link concorda: “Peter tinha ideias muito concretas e, em grande medida, foi o responsável pelo sucesso de Columbo. Há uma grande semelhança entre Peter e o personagem, a energia, o perfecionismo, o carisma, os esquecimentos. Peter é uma pessoa esquecida, estava sempre a esquecer-se das chaves do carro. Em grande parte, é ele.”

“SEM ELE, NÃO SERIA O MESMO”

Os pormenores conjugaram-se todos, o ar desleixado, o semicerrar dos olhos, provocado pelo olho de vidro do ator, tornando a caracterização de Falk num triunfo. O ar pensativo e supostamente intrigado com que Columbo coça a testa ou a cabeça, também não é casual. Nas séries televisivas, são colocadas marcas no chão, para que os atores possam regressar ao lugar exato, por motivos de iluminação e focagem. Ora, com estes maneirismos, Falk escondia o seu olho verdadeiro com a mão, dando a ideia de estar a refletir, enquanto o seu olho falso se mantinha fixo – uma forma de estar atento às marcas e ao seu posicionamento em cena.

O nova-iorquino Peter Michael Falk fez, autenticamente, das fraquezas, forças. O seu olho direito teve de ser removido aos três anos devido a um cancro. Num mundo obcecado pela imagem, demonstrou um talento extraordinário, sendo nomeado para dois Óscares e diversos prémios, conquistando muitos deles. Pelo caminho, foi rejeitado por Harry Cohn, o patrão da Columbia Pictures, conhecido pela sua vulgaridade, que lhe disse, “pela mesma quantia, posso arranjar um ator com dois olhos!” (Sem comentários.) Além de Columbo, são vários os seus desempenhos fantásticos no cinema, como no clássico Uma Mulher Sob Influência (1974) realizado pelo seu amigo John Cassavetes.

Nas palavras de Steven Bochco, editor de argumentos na primeira temporada, outro ator podia ter desempenhado Columbo. “Mas acho que não seria o enorme êxito em que se tornou. Sem ele, não seria o mesmo. Não podemos menosprezar o quanto Peter foi maravilhoso naquele papel. Foi um daqueles acidentes fortuitos de química…”

Surgem então as famosas frases, “há um pormenor que me incomoda…”, “desculpe, estou a ser uma melga”, “ a minha irmã tem uma sala como esta, muito moderna…” e a inconfundível, “oh, só mais uma coisa…” quando Columbo se prepara para sair e volta para trás. Divertido, Levinson revela que se tratou de um acaso:

“Quando Bill e eu escrevíamos a peça, tínhamos uma cena demasiado curta, e Columbo já estava de saída. Tivemos preguiça em reescrever a cena inteira, por isso, fizemo-lo voltar para trás e perguntar, ‘só mais uma coisa…’ Isso nunca foi planeado.” 20 anos depois de Prescription: Murder ser emitido, em 1988, Peter Falk elogiou o guião da dupla: “Não tinha uma falha. Não me recordo de alterar uma vírgula. Era um argumento fantástico.”

Outra coincidência foi a gabardina. Falk terá confundido a palavra overcoat (sobretudo), trocando-a por raincoat (gabardina), pelo que trouxe a sua gabardina usada favorita. Este detalhe causou problemas, pois a peça de vestuário emitia um roçagar, e Peter Falk, preferindo a naturalidade, não gostava de dobrar as suas falas, embora fosse bom nisso. “O som do tecido dava com os responsáveis pelo som em doidos”, graceja Levinson.

Curiosamente, Columbo foi a personagem que saiu mais barata aos estúdios da Universal, visto que toda a roupa pertencia a Peter Falk. O fato, os sapatos e a gabardina foram sempre os mesmos durante os 44 episódios da primeira fase da série, ao longo da década de 70.

A gabardina, comprada por Peter Falk na 57th Street em Nova Iorque, num dia chuvoso de 1967, tornou-se icónica, como o chapéu de Indiana Jones. Falk sempre jurou que o guião do primeiro telefilme especificava uma gabardina, enquanto Levinson e Link insistem no contrário. Foi tanta a fama da gabardina, que uma das duas substitutas (que não foram usadas) foi vendida num leilão em 1974 por 1000 dólares. Quando Columbo terminou a primeira fase de exibição, em 1978, Peter Falk guardou-a cuidadosamente no guarda-fatos de sua casa, em Beverly Hills. “Sinto grande afeto por ela”, comentou em 1988. “Tomo bem conta dela. Até já disse que lhe ponho um pires de leite junto a ela, todas as noites.”

COMEÇO ATRIBULADO

Prescription: Murder não foi um êxito propriamente estrondoso, mas os ratings foram razoáveis, e a Universal ofereceu um contrato aos argumentistas. Os responsáveis dos estúdios queriam tornar o telefilme numa série e abordaram Peter Falk, que recusou, mais interessado noutros projetos e indignado pelo cancelamento de The Trials of O’Brien, série que protagonizara em 1965/1966 e cujos argumentos considerava excelentes. Embora agradados com o desempenho de Falk, os dois criadores também não queriam que Columbo se tornasse numa série de TV.

Três anos depois, a Universal e a NBC voltaram a tentar, procurando agradar a Peter Falk, propondo exibir Columbo em rotatividade com outras séries numa rubrica dedicada ao mistério. Em vez de filmar 24 episódios de uma hora, rodaria seis episódios de 90 minutos. Este conceito, que funcionara bem noutros casos, agradou aos argumentistas e ao ator. Os três, porém, mantinham-se céticos quanto à viabilidade e potencial de Columbo.

A NBC fez então um pedido insólito a Levinson e Link – a escrita de um episódio-piloto. Mas já havia um que tinha provado o sucesso da fórmula. A cadeia televisiva não achou o mesmo, e a dupla concordou em escrever um novo episódio longo de apresentação, depois de Prescription: Murder, mas a tarefa era impossível, pois já se tinham comprometido com outros projetos. Sugeriram o jovem argumentista Dean Hargrove, o que foi aceite pelo patrão da NBC.

Após algumas peripécias, o realizador do primeiro telefilme, Robert Irving, foi novamente chamado para este episódio-piloto, e Peter Falk voltou a envergar a famosa gabardina em Ransom for a Dead Man, exibido a 1 de março de 1971. Aparentemente, devido ao conceito invulgar de Columbo, a NBC quis tirar a prova de que o sucesso de Prescription: Murder não fora um mero acaso. Mas a história repetiu-se: Ransom for a Dead Man foi um novo êxito, superando o telefilme anterior, e com o benefício de não ser uma adaptação de uma peça teatral, sendo concebido diretamente para a TV, com história de Levinson e Link, e argumento de Dean Hargrove.

Então veio a proposta definitiva de avançar com a série. Levinson e Link aceitaram. Mas os capítulos seguintes não seriam tão fáceis como se imaginaria…

David Furtado

(Só mais uma coisa… Continua no próximo artigo.)

2 pensamentos sobre “Columbo: A génese de um sucesso

  1. Caro, sou muito fã do Peter Falk, gostei muito do seu trabalho sobre o grande ator, meu ídolo em particular e minha série preferida, adquiri todas e estou no momento na 8ª temporada. Acho que poderias falar sobre In the laws, com Alan Arkin, para uma das maiores comédias do cinema mundial, abçs

    1. Muito obrigado, Marcos. Também gosto do Columbo, claro. Conheço mal a carreira de Alan Arkin. Já ouvi falar do The In-Laws, que ele fez com Peter Falk. Já ando para ver esse filme há bastante tempo, obrigado por me lembrares. Pelo que sei do filme, daria um bom texto, certamente. Tenho de ver primeiro. Abraço.

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