Columbo 3: “Eu, Peter Falk”


Encerro esta “trilogia” de artigos sobre Columbo com mais algumas curiosidades – o seu carismático automóvel, o cão, alguns célebres vilões, recordando cenas e episódios marcantes. Mas o foco, aqui, recai em Peter Falk, pois só um ator de rara inteligência conseguiria interpretar o genial Columbo. Este texto é, portanto, um tributo ao ator que, recorde-se, faleceu em 2011, depois de tornar uma personagem televisiva num ícone cultural.

Continuação de «Columbo 2: O caso do ator exigente».

Perguntaram muitas vezes a Peter Falk como foi criado Columbo e, nos dois artigos anteriores, descrevi as origens da série e as batalhas de Falk com os produtores. Mas o que tem a dizer o ator que envergou a gabardina mais famosa de todos os tempos?

“Atraiu-me, desde muito cedo, o potencial dramático de interpretar um homem que possuía dois traços antagónicos. Por um lado, é um tipo normal, podia ser nosso vizinho, nada de especial, e, ao mesmo tempo, é o detetive mais brilhante do Planeta. Um tipo com uma mente de Einstein que aparenta ser um merceeiro.”

Peter Falk partilhava várias características pessoais com Columbo e, quando discute o seu personagem mais famoso, sobressai até uma certa curiosidade em tentar dissecar a fórmula, em “resolver o caso”.

“Na vida real, eu, Peter Falk, soo como um miúdo de rua. Na minha vida, visto-me como um desmazelado, por isso, sabia que ia gostar da faceta simples de Columbo, já que a simplicidade me é natural. Por outro lado, também sou excêntrico como o Tenente. Estou a pensar em qualquer coisa. Em quê?”

“Com frequência, isso surge no guião, relacionado com o meu personagem, o que ele faz, pensa e diz. Se acho algum pormenor falso ou aborrecido, torno-me obcecado em tornar o personagem mais interessante ou divertido… fazendo alguma coisa… tudo para manter o público interessado.”

“Columbo é conhecido por outros traços. Insiste obsessivamente nos detalhes, quer avaliá-los com o máximo rigor possível. Isto foi herdado de mim e, neste campo, sou superior a ele. Por exemplo, quando me peso, e para que a medição seja rigorosa, não me basta tirar a roupa toda, incluindo as peúgas… também tiro o relógio e a minha única lente de contacto… estou a brincar.”

“Portanto, era fácil para mim detetar outro obsessivo como Columbo. À primeira impressão, ele parece amigável, de trato fácil, pacífico; mas eu, Peter, vi uma parte de Columbo que era como uma parte de mim. Vi um homem com um impulso obsessivo. Vi que, por detrás da gabardina, estava alguém que não conseguia dormir até encontrar a resposta.”

“Não me recordo do episódio em que comecei a colocar pedaços de papel, apontamentos escritos à mão, nos bolsos da gabardina, mas lembro-me bem do rosto do ator. Ali estava ele, aguardando qualquer prova incriminatória e decisiva, e do bolso de Columbo sai… um bocado de pão e uma caixa de passas. Até se conseguiam ouvir os pensamentos do assassino: ‘Este Columbo não pode ser chui, é demasiado burro’.”

Estas situações inesperadas provocavam um bom ambiente no set. “Podem imaginar como todos aqueles atores fantásticos que participaram na série adoravam tais momentos espontâneos”, diz Falk. “Para os atores, as surpresas são agradáveis. Adoramo-las.”

“Aparentar ser uma pessoa inteligente era algo que o tornava desconfortável e em desvantagem. Sentia-se muito mais à-vontade se parecesse um pouco lento; descontraía-o, dar aquela impressão de mediocridade. Sabia que tinha as pessoas onde as queria. Por isso é que, quando tinha um dos seus raciocínios geniais, era divertido trabalhar essa cena e atribuir tal observação a um familiar, ao cunhado ou ao tonto do sobrinho. Nunca se viu um detetive com tantos cunhados e um exército de parentes, todos eles com ideias brilhantes.”

Para dar uma ideia: Há uma irmã que gosta de mobília moderna, um sobrinho que usa lentes de contacto, um irmão com 38 anos que ainda guarda as sapatilhas que usava no liceu, um sogro que adora westerns, um cunhado chamado George, um tio que tocava gaita-de-foles…

A gabardina foi uma questão de instinto:

“A indumentária de Charlie Chaplin… lembramo-nos disso, não é? O chapéu de coco e a bengala. Não sei como me ocorreu a gabardina que tinha no armário do andar de cima, em casa. Não o consigo explicar. Pedi a uma responsável pelo guarda-roupa para pegar num fato azul e branco e o tingir de castanho-claro. Queria que condissesse com a gabardina. E estava lançado. Também me lembrei de uns sapatos meus. Igualmente castanhos. Comprara-os em Itália e eram algo subidos no tornozelo, o tipo de sapatos que um imigrante usaria. E acrescentei uma gravata verde e desinteressante, que já tinha há mil anos.”

Tal como Chaplin, que também idealizou o ar de Charlot, Peter Falk olhou-se ao espelho e adorou o que viu. “Gostei tanto que pus de parte outros fatos, qualquer mudança de vestuário. Columbo não precisa de um guarda-roupa completo – o que eu envergava, funcionava. É isto! Nada a não ser o que eu via ao espelho.”

“As pessoas diziam que me esquecera de barbear. Ótimo! Precisava de cortar o cabelo? Ótimo! Tudo se conjugava.”

A cadeia de TV e os estúdios perguntaram o que fazia um homem de gabardina no sul da Califórnia. “E se tivesse de ir à praia? Por que só tem um fato e o usa 365 dias por ano?”, graceja Falk. “Eram questões pertinentes, mas não houve grande oposição e acabaram por dizer, ‘se é o que ele quer, façam-lhe a vontade’. Além disso, era barato, o que é sempre um bónus.”

VILÕES NAS PÁGINAS AMARELAS

O primeiro episódio a ser filmado, «Death Lends a Hand» ao contrário do que sucederia na série, centra-se num crime não premeditado. Adicionalmente, há um toque de Hitchcock na sequência do assassínio e ao longo da história. O criminoso, ‘Brimmer’ (Robert Culp), não resiste à sua natureza violenta. Trata-se de um ex-polícia e dono de uma empresa de investigações, o que coloca algumas dificuldades a Columbo. Neste episódio, surge também o ator Ray Milland, agraciado com um Óscar e veterano em filmes de suspense como Dial M for Murder de Hitchcock.

Nunca foi problema encontrar atores de renome para os papéis de vilões, devido à qualidade e prestígio que a série rapidamente evidenciou. Essa exigência da NBC foi fácil de satisfazer. Alguns, como Robert Culp ou Jack Cassidy, interpretaram diferentes assassinos. Mas houve muitos outros nomes que participaram, como Ruth Gordon, Janet Leigh ou Roddy McDowall, que comentou:

“Os vilões são sempre divertidos de representar, e estes papéis eram muito atrativos e complexos. E recordem-se que o vilão tem de estar quase constantemente em cena durante os primeiros 20 minutos, antes que Columbo apareça sequer. A série fazia-me lembrar Alfred Hitchock Apresenta. Era muito gratificante.”

Tal como são gratificantes os episódios para o telespectador. Em «Étude in Black», que abriu a segunda temporada, no final de 1972, participa o grande amigo de Falk, John Cassavetes, no papel de um arrogante maestro. Foi um dos melhores episódios, Falk adorou o argumento, e a inclusão de Cassavetes não foi um mero favor: As cenas em que ambos se confrontam, atingem um nível de representação raramente visto em séries televisivas – a química entre os dois é mais apropriada a cinema.

Outro criminoso de destaque é Leonard Nimoy, (célebre pelo seu papel de ‘Mr. Spock’ em Star Trek). Em «A Stitch in Crime», o maquiavélico cirurgião provoca semelhante antipatia em Columbo que quase o faz perder a paciência. O tenente bate com um cinzeiro de escrivaninha na mesa e fita Nimoy, dizendo, “sei que foi você!”, recebendo um olhar sarcástico em troca.

“Achei a série muito bem concebida”, declarou Nimoy. “Diverti-me imenso a trabalhar com Peter Falk. Enquanto ator era um desafio, era brilhante. Quando contracenamos com um colega assim, damos o máximo de nós próprios e o resultado nota-se.”

Estas atitudes coléricas de Columbo são raras e, por vezes, destinam-se a provocar uma reação que lhe possa servir de pista quanto à personalidade do suspeito. O detetive tem uma atitude semelhante no primeiro telefilme: Prescription: Murder. Os criadores não apreciavam estas explosões, mas elas são, sem dúvida, eficazes e intrigantes. Segundo Peter Falk, “se exagerasse nesse aspeto, não seria bom. É um comportamento que o torna mais humano”.

Em busca de maus da fita com posições sociais importantes, os criadores da série, Richard Levinson e William Link, recorreram à lista telefónica, procurando profissões. E o irónico é que muitas delas foram utilizadas. A duração dos episódios também variava, com alguns a passarem da hora e meia e a atingirem as duas horas. Outros, duravam 70 minutos. Os orçamentos excediam o limite, os prazos não se cumpriam; as fúrias de Peter Falk por manter o nível de qualidade, além das exigências por aumentos de salário, foram situações que a NBC perdoou, tal a popularidade que Columbo conquistou. No outono de 1973, havia já inúmeros detetives televisivos, tentando repetir o sucesso.

A primeira temporada surgiu em 14º lugar nas séries mais vistas. Mas já se espalhara uma Columbo-mania pelos EUA. Os cómicos usavam frases do detetive, os taxistas nova-iorquinos gritavam as suas imitações de Columbo quando viam Peter Falk, e multidões aglomeravam-se à porta dos estúdios em busca de autógrafos. Nos anos seguintes, viria a consagração dos Globos de Ouro, dos Emmys…

O PEUGEOT

Enquanto escreviam o guião de «Death Lends a Hand», Levinson e Link lembraram-se que Columbo podia ter um carro a condizer com a sua personalidade… A princípio, Peter Falk resistiu a isto, por já haver a esposa, o charuto e a gabardina, ou seja, demasiadas particularidades. Os criadores da série, ironicamente, ficariam irritados quando argumentistas e produtores começaram a insistir demasiado nestes pormenores, em temporadas futuras. Mas, regressando ao carro…

“Finalmente, convencemos Peter a ir dar uma olhadela a uma garagem da Universal”, recorda Richard Levinson, “e ele foi lá com Bill [Link] para escolher um automóvel”. Link lembra-se que havia por lá todas as marcas e modelos imagináveis, “mas Peter não gostou de nenhum”.

“Pareciam todos iguais”, recorda Falk. “Centenas e centenas de carros numa garagem. As filmagens começariam no dia seguinte e queriam que eu escolhesse um carro. Enquanto ator, era como selecionar o chapéu certo para um personagem. Finalmente, disse a Bill, ‘não encontro nada, vamos embora’. Quando saíamos, a um canto, lá ao fundo, vi o ‘nariz’ de um carro a espreitar. Eles disseram, ‘este nem sequer funciona, nem tem motor’. Eu respondi, ‘é este’”.

Num episódio, um vendedor de carros usados diz a Columbo, “é uma beleza. Não costumamos ver muitos destes por aqui. Especialmente… neste estado”. “Bom, eu tento tratar bem dele”, responde o Tenente…

Na realidade, tratava-se de um Peugeot antigo e de coleção. Link perguntou a Peter: “Por que motivo andaria um chui da Polícia de Los Angeles a conduzir um carro estrangeiro e tão único?” “Não te preocupes”, sossegou-o Falk. “O público vai gostar. É uma idiossincrasia.”

Idiossincrático ou não, o carro estava feito num oito, com assentos rasgados, amolgadelas, a capota retrátil cheia de cortes e um espelho retrovisor que não se mantinha fixo. O descapotável surgiu em quase todos os 43 episódios, sendo a fonte humorística de várias cenas como as que incluem pneus furados ou mecânicos a aconselharem Columbo a mudar de carro. E o Tenente a ripostar: “Já tenho dois carros. É claro que o da minha mulher não é nada de especial. É só para transporte, compreende?” “Só trabalho com carros estrangeiros”, diz o mecânico. “Mas este é um carro estrangeiro.” “Eu sei, mas há limites, meu.”

“Nunca me ocorreu que Columbo precisasse de um carro”, explica Peter Falk. “Os chuis andavam em carros da polícia. Mas quem se daria ao trabalho de perguntar que automóvel conduziria um detetive da secção de homicídios?” Falk queria algo que se distinguisse e, quando encontrou o Peugeot, achou perfeito, “até porque condizia com a gabardina”.

A boa educação de Columbo foi outra característica que Falk integrou no Tenente.

“Mais uma vez, foi um caso de instinto. Eu sempre disse que Columbo era, por natureza, um homem educado desde que nascera. A boa educação não era um dos seus fingimentos, e acho que isso não se finge. Não foi por nenhum motivo consciente. Apenas achei bem. E continuei a achar bem durante os 30 anos seguintes.”

Quando a série foi retomada, em 1988, estavam todos convencidos de que o famoso Peugeot se encontrava guardado, mas descobriu-se que a Universal vendera os automóveis! Um dos carros substitutos foi localizado no Ohio.

O “CÃO”

“Estava a pensar em observá-lo e dar-lhe um nome, consoante alguma coisa que ele fizesse”, diz Columbo ao veterinário. “Mas ele só dorme e se baba. Este cão precisa de um nome que lhe dê algum estatuto. Precisa de toda a ajuda que conseguir.”

Sempre indeciso quanto ao nome a dar ao animal que salvou do canil antes que o abatessem, Columbo acaba por chamar-lhe… “cão”. Não sendo um participante regular, ‘Cão’ foi uma fonte de divertimento em vários episódios. De acordo com Peter Falk, “o problema de ter um cão em TV, é a sua idade. Quando o arranjámos, em 1971, já era muito velho. Morreu em 1973 e o seu substituto era muito mais jovem. Isto causou um problema.”

Devido ao ar descuidado de Columbo, Peter entrava e saía da caracterização num instante.

“Ficava pronto rapidamente. Mas não podíamos filmar. Tínhamos de esperar pelo cão. Onde estava ele? Estava na caracterização. É verdade… sentado numa cadeira de barbeiro a roer ossos, enquanto as responsáveis pela maquilhagem, que eram fãs dele, usavam cremes e pós no seu focinho para o fazerem parecer mais velho. 30 minutos perdidos.”

Peter Falk cita um argumento que ele próprio escreveu, em que Faye Dunaway pergunta a Columbo qual foi o caso em que trabalhou mais tempo. “Ele responde ’11 anos’. Demorou 132 meses, mas finalmente acabou. Ele descobriu a resposta.”

Em 2007, Peter Falk ainda estava determinado em interpretar o último caso de Columbo. A sua saúde deteriorou-se e, em 2009, o diagnóstico foi cruel: O ator sofria de demência. Tristemente, o seu médico referiu que Falk nem se recordava da personagem de Columbo. O ator faleceu em 2011, aos 83 anos, devido a complicações originadas pela doença de Alzheimer. Sobre a morte, disse uma vez: “É apenas o portal de entrada.”

Uma das suas filhas é hoje detetive particular.

David Furtado

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