High Sierra de Raoul Walsh: O último refúgio de Bogart


High Sierra (O Último Refúgio) é um filme importante por vários motivos. Foi a última vez que Humphrey Bogart surgiu nos créditos iniciais em segundo lugar (embora seja efetivamente o protagonista), e a obra que o lançou como ator principal. Foi um dos precursores do film noir, uma das melhores obras de Raoul Walsh, e exerceu profunda influência nos filmes de gangsters. O argumento de John Huston baseou-se no (então mais recente) livro de um dos mais prolíficos escritores e argumentistas a trabalhar em Hollywood, W. R. Burnett, autor de Scarface e Little Caesar. Burnett escreveu também a obra The Asphalt Jungle, film noir clássico, levado ao grande ecrã, anos depois, por Huston.

Além de ser um dos melhores filmes de gangsters de sempre, com Bogart em topo de forma, High Sierra conta com uma realização igualmente notável de Raoul Walsh, que reuniu as diversas peças da história com a fluidez que lhe era muito própria. Bogart é o anti-herói que tem o público consigo desde o começo, o criminoso capaz de ternura, o homem alienado que nunca se rende e cujo destino começa progressivamente a descarrilar, como se estivesse tudo contra ele.

High Sierra, remotamente baseado na vida de John Dillinger, é a história de Roy ‘Mad Dog’ Earle (Bogart), um gangster que, mal sai da prisão, se envolve no planeamento de um novo golpe: Roubar o casino de uma estância das montanhas californianas, assalto que corre mal. Walsh intercala nesta narrativa, duas outras: O relacionamento com ‘Velma’, a rapariga que ‘Mad Dog’ ama, tenta ajudar e que o rejeita, e ‘Marie’, uma mulher vivida e mais compatível com ‘Earle’.

O papel principal foi inicialmente oferecido a Paul Muni (Scarface), mas o ator pretendeu fazer um acordo com a Warner, incluindo outro projeto, acabando por se desentender com os estúdios. Pensou-se depois noutro ator que traria potenciais lucros, George Raft.

Em simultâneo, duas pessoas estavam atentas à adaptação cinematográfica de High Sierra e ao papel de ‘Mad Dog’: Humphrey Bogart queria protagonizar o filme, e John Huston era admirador de Burnett. Contudo, a tarefa de escrever o guião foi entregue a Warren Duff, que via em High Sierra um filme de gangsters linear. Huston apressou-se a intervir junto da Warner, escrevendo um memorando onde referia:

“Seria muito fácil tornar isto num filme convencional de gangsters, exatamente o oposto do que deve ser.” Burnett e Huston colaboraram na escrita do argumento, no qual transparece um fatalismo que se infiltra em todos os ângulos da narrativa.

Huston não era grande fã de George Raft. “Ele recusou o papel em High Sierra. E eu fiquei encantado porque, então, Bogie podia representar ‘Mad Dog’. E eu sabia que Bogie era um excelente ator”, comentou Huston.

O filme anterior de Raoul Walsh, They Drive by Night, fora protagonizado por Ida Lupino, George Raft e Bogart, tornando-se num grande sucesso de crítica e público. A Warner queria repetir a fórmula, reunindo Walsh, Raft e Lupino em High Sierra. Realizador e atriz foram logo contratados, com Ida Lupino a ser creditada como protagonista, devido ao seu trabalho em They Drive by Night. Restava saber quem interpretaria Roy ‘Mad Dog’ Earle…

Raoul Walsh diria sempre que a contratação de Bogart para este papel-chave da sua carreira foi ideia sua: Terá convencido Jack Warner que era o ator ideal. Como o patrão do estúdio respeitava os instintos do realizador, concordou.

Há outra versão, referida por Marilyn Ann Moss, na sua biografia Raoul Walsh: The True Adventures of Hollywood’s Legendary Director: Bogart fez diversas manobras de bastidores para conseguir o papel e procurou convencer Raft a não o aceitar, dizendo que seria mau para a sua carreira, interpretar um personagem que morre no final. Moss sugere que toda a gente tentava ficar com os créditos de tudo, no que toca a High Sierra. Resumindo, George Raft preferiu promover They Drive by Night, e os lucros financeiros dessa publicidade, recusando o papel de ‘Mad Dog’.

Raoul Walsh, ainda assim, e como era seu hábito, envolveu-se na escolha do elenco, selecionando Joan Brodel (Joan Leslie), de 15 anos, para o papel de ‘Velma’. Depois de completado o argumento, a censura interveio, proibindo menções a infidelidades sexuais e frases relacionadas com Deus, palavrões; nem se podia dizer o termo “metralhadora”…

As filmagens começaram na zona de Lone Pine, na Califórnia, a 5 de agosto de 1940 e prosseguiram nas imediações. Como a maioria do elenco e da equipa caçava, todos se recordam que Walsh envergava um garrido casaco de sete cores, para evitar ser confundido com um veado pelos caçadores.

Outra curiosidade reside na cena final, em que Bogart teve de correr cerca de cinco quilómetros por uma encosta acima, ao longo de dois dias de filmagens. Raoul Walsh ordenou que retirassem os maiores pedregulhos do caminho, mas o ator protestou, sem sucesso, por ainda haver bastantes pedras. Apesar dos obstáculos, saiu-se bem. Apenas esfolou um joelho!

Os queixumes do ator tornaram-se tão frequentes que Walsh o alcunhou de “Bogie the Beefer”. (O embirrento). Um dia, Walsh levou-lhe uma sanduíche, quando Bogart estava sentado numa enorme pedra, a transpirar como “um cavalo após uma corrida e a protestar ainda mais do que o habitual”, recordaria o cineasta. “Perguntei-lhe o que achava da vida ao ar livre, e ele disse-me, ‘quero que o ar livre se dane.’” Bogart descarregou então na sanduíche: “Deve ter sido feita no ano passado!… Nem sei como têm dinheiro para isto… Jesus Cristo, dão melhor comida aos prisioneiros de San Quentin.” Walsh, oportunamente, lembrou a Bogart o salário que lhe estavam a pagar…

Foram birras que não afetaram o bom relacionamento entre realizador e ator. Até porque Walsh sabia manter o elenco na ordem. Algumas cenas mais leves de High Sierra incluem o cão ‘Pard’, que acaba por ter um papel importante na narrativa e é representado por “Zero the Dog”, o cão de Humphrey Bogart na vida real, o que dá um toque de genuinidade às cenas em que ambos interagem.

As filmagens de High Sierra prosseguiram em Los Angeles, terminando a 26 de setembro, e deixando Walsh bastante satisfeito com os resultados. De acordo com a IMDb, Ida Lupino irritou-se com os “abusos verbais” de Humphrey Bogart e recusou-se mesmo a trabalhar com ele em Out of the Fog (1941). Segundo a biografia de Marilyn Ann Moss, a atriz sempre negou tais alegações.

Moss é também da opinião que High Sierra foi dos filmes mais arriscados de Walsh, durante o seu período na Warner Bros, “devido à profundidade emocional conferida aos personagens. (…) Há um sentimento de tristeza e perda nos seus corações”. Este é um dos fatores, quanto a mim, que tornou o filme num clássico. Sem nunca cair no melodramático, Walsh filma Bogart, humanizando o atormentado e arrogante criminoso com coração de ouro que conquista a nossa compaixão. Muitos de nós temos de ser foras-da-lei para preservar a dignidade… ou será que a sociedade se fundamenta em crimes calculistas, desonrando princípios humanos em seu próprio proveito? Parece ser esta uma das questões implícitas no filme.

Raoul Walsh não concordava com o destino dado ao personagem de ‘Mad Dog’; teve de “matá-lo” para agradar à censura e às mentalidades politicamente corretas. No fim de contas, trata-se de um fora-da-lei.

“Gostaria que ele, a rapariga e o cão escapassem em direção ao deserto, para algures, com o sol a pôr-se, mas os malditos censores eram rígidos, nesses tempos.”

Marilyn Ann Moss assinala com pertinência o modo de filmar de Walsh, que capta os personagens em poses tristes, em planos médios e nos grandes planos. Neste aspeto, o filme é fiel ao livro, que descreve ‘Earle’ como possuidor de uma “alma em conflito” e “olhos tristes”. Tal combinação de rudeza e vulnerabilidade foi encarnada na perfeição por Humphrey Bogart.

Numa sociedade que não o aceita, ‘Roy Earle’ parece fugir de tudo, “tanto do seu passado criminoso como do seu passado inocente”, escreve Marilyn Ann Moss. A autora compara também esta noção ao passado traumático de Raoul Walsh, cuja perda da mãe o afetou para a vida toda.

Outra qualidade de Bogart era a “contemporaneidade” do seu trabalho, um dom que também se encontra em Montgomery Clift, para dar um exemplo flagrante. Quero com isto dizer que as representações não estão datadas; o filme não nos dá a impressão de ter ficado suspenso nos anos 40, como sucede muitas vezes. Importa também não esquecer que High Sierra é um filme de ação, apesar das dimensões suplementares que Raoul Walsh magistralmente lhe adicionou.

O autor da obra original, W. R. Burnett, ficou satisfeito com o filme, realçando a inteligência e astúcia de Raoul Walsh, e recorde-se que já o preferira ao primeiro candidato para realizar High Sierra: Michael Curtiz.

Estreado a 25 de janeiro de 1941, o filme foi um sucesso de bilheteira acima da média. Seria alvo de dois remakes. Em 1949, o próprio Walsh filmou-o num contexto western: Colorado Territory. Em 1955, regressou-se ao formato original com I Died a Thousand Times, protagonizado por Jack Palance e Shelley Winters. Palance não é mau no papel, mas Bogart continuou e continuará insuperável. (Sabe-se lá se aparece mais um remake.)

Curiosamente, em I Died a Thousand Times, surge Lee Marvin num dos inúmeros papéis secundários que desempenhou antes de se tornar numa lenda. O que é bizarro é que se trata de um erro brutal de casting: Marvin representa um dos cúmplices de ‘Earle’, amedrontado perante as ameaças doutro criminoso, representado por um ator de ar nada temível, o que se torna ridículo, tendo em conta que Marvin foi, durante muito tempo, vítima do typecasting, interpretando vilões sádicos e duros, repetidamente. Mas o dia de Marvin chegaria.

O de ‘Mad Dog’ também chegou, em High Sierra. E é um Bogart cercado e em desespero que grita, no final, do cimo da montanha: “Come and get me!” Porque, tal como refere o trailer, os homens não podem subir mais alto. Alguns homens.

David Furtado

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