A Desaparecida (The Searchers): A odisseia do solitário John Wayne


A obra-prima de John Ford baseia-se numa história lendária e verídica do velho Oeste, que sucedeu no Texas em 1836. Uma rapariga de nove anos, Cynthia Ann Parker, foi raptada por Comanches, Kiowas e Caddoes em Parker’s Fort, na margem do Rio Navasota. Os índios deram-lhe um novo nome, Naduah. A jovem, após crescer, casou com o chefe dos Noconi. Naduah foi resgatada em 1860 e tentou voltar para a sua tribo. Impedida de o fazer, morreu voluntariamente à fome. O seu filho tornar-se-ia o último chefe dos Comanches até à rendição desta tribo, em 1875.

A Warner Bros estava empolgada com a perspetiva de um western que reunisse John Ford e John Wayne. Os 4 milhões de dólares propostos por Ford não agradaram, contudo, a Jack Warner, que quis desistir da produção. Também entusiasmado estava Wayne, que afirmou:

“Eu queria mesmo fazer aquele filme. Voltaria a trabalhar com o Coach [Ford] e desempenharia um papel que, achava, podia ser o meu melhor trabalho desde She Wore a Yellow Ribbon, ou mesmo Red River. Também era inédito para mim, em termos do formato da história. Era uma saga que decorria ao longo de vários anos.”

‘Ethan Edwards’ parte com ‘Martin’ (Jeffrey Hunter) em busca das duas sobrinhas, ‘Lucy’ e ‘Debbie’, capturadas pelos Apaches. Os índios mataram o irmão e esposa de ‘Ethan’. No papel, Wayne mostrou qualidade inéditas, deixando de ser o herói impoluto e tornando-se num homem sombrio em busca de vingança. ‘Debbie’ acabou por se tornar índia e assimilar os costumes da tribo. Portanto, o público não sabe se ‘Ethan’ a matará também quando a encontrar.

Segundo o próprio Wayne: “Muitas pessoas perguntaram-me por que ‘Ethan’ ficou tão determinado e rancoroso, a querer matar ‘Debbie’, e depois, no instante final, a leva para casa. Ford foi astuto porque deu a entender, e eu também, que ‘Ethan’ tivera um caso com a esposa do irmão. Mas não o dissemos às claras. O público teria de lá chegar. Quando ‘Ethan’ pega em ‘Debbie’ no final, eu tive de imaginar o que lhe iria pela mente quando olha para ela. Acho que viu, nos olhos dela, a mulher que amara. E isso bastou para superar o seu ódio. Caramba! Que momento fantástico. E que grande papel tive a oportunidade de desempenhar.”

A RAPARIGA BRILHANTE DO VALE

The Searchers foi filmado no Monument Valley, o local favorito de John Ford: “Tem rios, montanhas, planícies, desertos, tudo o que a terra pode oferecer. Sinto-me em paz lá. Andei por todo o mundo, mas considero este o lugar mais completo, belo e pacífico da terra.” A zona rude a sudoeste do Valley não bastava para o que Ford ambicionava: Um western grandioso. Deste modo, no inverno e verão de 1955, a equipa trabalhou também no Canadá.

Em março de 1955, uma segunda unidade estabeleceu-se no Colorado; sequências com búfalos foram filmadas no Canadá, sem a presença de Ford, e só posteriormente, a 16 de junho, começou a rodagem principal com a sequência do regresso de Wayne a casa. Filmou-se ainda em Los Angeles (quando Wayne pega em Natalie Wood e lhe diz, “vamos para casa, Debbie”.)

É uma cena clássica e foi captada em Bronson Canyon, no Griffith Park de Hollywood, ao meio-dia de 12 de Agosto, no penúltimo dia de filmagens, antes da equipa fazer uma pausa para o almoço. À tarde, mudaram-se para os estúdios da RKO – Pathe Studio em Culver City, para filmarem outra cena lendária deste produtivo dia, e que requereu de John Wayne uma completa mudança de atitude emocional. É a situação em que, no meio de neve artificial, ‘Ethan’ e ‘Martin’ desistem temporariamente da busca por ‘Debbie’.

Natalie Wood cancelou umas férias no Havai para participar em A Desaparecida e achava que era “uma coisa importante entrar num filme com John Wayne”. Considerava o seu papel pequeno mas crucial. A verdadeira razão por que aceitou foi a concordância de John Ford, que deu um pequeno papel à sua irmã de oito anos, Lana, que interpreta ‘Debbie’ enquanto jovem nas cenas do rapto.

Outras sequências foram captadas na reserva Navajo, onde sucedeu um incidente feliz e um pouco irónico:

John Ford organizou uma festa, celebrando o 4 de Julho, incluindo várias festividades como churrascos, canções e corridas de cavalos. Os Navajo ofereceram-lhe uma pele de veado com uma inscrição inspirada pelo Cântico Noturno da tribo, o “Yeibichai”: “Que nas tuas viagens haja beleza atrás de ti, beleza de ambos os lados e beleza à tua frente.”

Natalie Wood recordar-se-ia do “imperioso” Ford: “Duro mas bom para mim”. No Monument Valley, Arizona, estava um calor insuportável. Wood ficou com boas recordações do filho de John Wayne, Patrick, por quem teve uma paixoneta, sentimento mútuo. Eram dois adolescentes num local remoto. O pai advertiu o filho: “Vê lá o que fazes…”, temendo que se envolvesse demasiado com Natalie, que comemorou 17 anos no set.

A cena em que Wayne encontra Wood a viver com os Comanche provocou o seguinte comentário de John Ford, o seu único reparo à jovem atriz: “Aquela miúda foi brilhante hoje.”

A filmagem terminou com a gravação das cenas finais, a partida de ‘Ethan’, “a tragédia de um solitário”, como lhe chamou Ford. Os movimentos e ar confuso de John Wayne ficaram bastante “realistas” porque o ator estava com uma grande ressaca.

UM DUKE DIFERENTE

Era um relato simbólico a vários níveis, dotado de riqueza humana. A história verídica de Cynthia Parker inspirou o escritor Alan LeMay, que ocasionalmente se dedicava a argumentos para cinema, a escrever um romance sobre a busca desta rapariga por parte de dois texanos. Frank Nugent trabalhou o livro de LeMay, cuja ação e enredo eram bastante superficiais, adicionando vitalidade e humor.

Diversos atores que trabalharam no filme ficaram espantados e até chocados ao verem a representação de John Wayne, muito diferente do habitual. Ken Curtis (‘Charlie McCorry’) afirmou:

“Geralmente, o Duke encarava o trabalho com bastante à-vontade. Era comum arranjar tempo para pregar partidas, adorava rir-se quando lhe contavam uma anedota, mas quando fizemos The Searchers não estava tão descontraído. Simplesmente não o parecia. No início, pensei que fosse por John Ford o pressionar como era costume, e é certo que arranjou oportunidades para dizer coisas que espicaçaram o Duke. Mas depois percebi por que andava ele tão pensativo. Era apenas a sua concentração no papel.”

“Dobe Carey dise-me, ‘reparaste no olhar do Duke naquela cena que fizemos?’ Perguntei-lhe ao que se referia, pois não estivera lá, e ele disse, ‘quando olhei para ele, estava com o olhar mais frio e feroz que já vi. Nunca vi o Duke assim’. E julgo que isto se deveu ao facto de ele estar a procurar no íntimo de si mesmo qualquer recanto obscuro onde nunca tinha ido. Bom, isto mostra como ele era bom. Qualquer pessoa que diga que o Duke fazia dele mesmo – e até ouvi o Duke dizê-lo –, devia assistir a The Searchers, porque verão John Wayne adicionar uma dimensão totalmente nova ao seu personagem.”

A tarefa de conseguir o argumento apropriado parece ter sido árdua para John Ford, mas este já queria realizar um western há bastante tempo e considerava o filme bom para a sua saúde, espírito e moral. E faria História no processo. Há uma conjunção de fatores que tornam The Searchers o clássico que é. Um é a personagem central ‘Ethan Edwards’ (Wayne), antigo soldado da Confederação, mercenário e fora-da-lei.

Ford tinha uma particularidade: Desrespeitava as “direções de cena”, ou seja, convencionalmente e segundo as regras de Hollywood, tudo tinha de ser filmado do mesmo ângulo e “na mesma direção” para garantir uma suposta fluidez no enquadramento. O diretor de fotografia de The Searchers, Winton C. Hoch, esclarece que este aparente sinal de desleixo era uma forma de o realizador impedir que os editores lhe fizessem cortes. Se um personagem entra pelo lado supostamente errado da cena, não se podia cortá-la a meio até que ele saísse. Era também um modo de Ford contornar as convenções da filmagem e um aspeto que distingue muitas das obras do cineasta. (Repare-se no modo como foi filmada a famosa perseguição de Stagecoach, com enquadramentos e ângulos sempre alternados.)

Hoch, a quem muito Ford deve pela beleza dos seus filmes, respeitava imenso a arte do cineasta e, em simultâneo, desprezava o espírito submisso que Ford encorajava entre os colaboradores. Hoch filmou A Desaparecida em Technicolor e Vista Vision, processo técnico que, empregando um negativo duplo de 35mm, garantia uma profundidade de campo e nitidez superiores. Só havia dois cinemas no país, em 1956, capazes de projetar uma película com estas características. Assim, para as restantes salas, a obra foi revelada convencionalmente (em negativo único de 35mm) sem perder muita qualidade de imagem.

DUALIDADES

Em 1956, a visão do realizador piorava, (tinha sido operado a uma vista no ano anterior) embora o filme, justamente considerado um clássico, seja prova de que isso não lhe afetava o talento. Quando estreou, A Desaparecida foi muito elogiado por algumas publicações, como a The Hollywood Reporter: “Sem dúvida, um dos maiores westerns alguma vez feito.” A revista Look deu-lhe grande destaque, chamando-lhe “odisseia homérica” e juntando ao artigo ampliações de vários planos notáveis da obra. Outros não apreciaram, considerando incompreensível a atitude amarga e taciturna do personagem de John Wayne.

Às críticas negativas e aos que não perceberam esta “atitude”, escapou-lhes um traço do personagem de Wayne bem patente ao espectador mais atento. ‘Ethan’ é racista relativamente aos índios. O problema era que tais atitudes estavam tão enraizadas na cultura americana em 1956, que passaram despercebidas. O herói hollywoodesco do Oeste retratado por Wayne possui uma vertente pouco “tradicionalista”, se quisermos, no western.

Como acontece tantas vezes, o facto não passou despercebido do outro lado do Atlântico, em Inglaterra, onde Lindsay Anderson da Sight and Sound assinalou: “Ethan é um inegável neurótico, consumido por um ódio irracional aos índios.” Anderson nem achou que a busca pela sobrinha se devesse a amor ou razões altruístas, mas a um pavor à “contaminação”. Ao ver The Searchers, não posso deixar de concordar com esta descrição, que não diminui a minha admiração pela obra e o grande trabalho de Ford e Wayne. É verdade que o filme sempre foi encarado como indício de possível racismo por parte de John Ford. Há, pelo menos, uma certa dualidade. Antes de o realizar, descreveu-o como “uma espécie de épico psicológico”.

É um retrato mais complexo do que aparenta, passível de diversas interpretações e uma alegoria. O herói, Wayne, torna-se progressivamente mais indistinguível do seu inimigo, o índio ‘Scar’. “Tive dois filhos mortos pelo homem branco. Por cada um deles, tiro muitos escalpes”, diz o personagem. Portanto, o ódio funciona como um espelho e ‘Ethan’ é um herói que se debate com impulsos selváticos e humanos em simultâneo.

John Wayne disse, em 1975, que “adorou o personagem e adorou interpretá-lo”. Tanto que deu o seu nome ao filho mais novo: John Ethan. Em 1974, o historiador de cinema Brian Huberman, elogiando a interpretação de Wayne, cometeu o lapso de chamar a ‘Ethan’ um vilão. O Duke, irritado, ripostou: “Ele não era nenhum vilão. Era um homem que vivia na sua época. Os índios foderam-lhe a mulher [citação à letra]. O que teria feito você?”

Wayne é realmente extraordinário e subestimado como ator. Era esta a opinião de James Stewart, por exemplo, que disse também, sobre The Searchers, tratar-se, a seu ver, de “uma das atuações mais maravilhosas de todos os tempos”. E há que ter em conta o espírito do personagem, um rebelde, incapaz até de viver entre os “civilizados”, de personalidade individualista, estóica, um homem que vivia na sua época, realmente, como o descreveu Wayne.

Um comentário interessante foi o de Jean-Luc Godard, que era crítico na altura: “O mistério e fascínio deste cinema americano… como posso odiar John Wayne por defender [o político de direita conservador] Goldwater e amá-lo tão ternamente quando ergue, de súbito, Natalie Wood e a abraça, na última bobine de A Desaparecida?”

Wayne viria a revelar o segredo da sua interpretação intensa. Baseava-se nas suas convicções políticas: “Apenas pensei nos Apaches, não como índios, mas como os comunistas que me tinham tentado matar. Pensei, e se tivessem sido os comunas a fazer isto? E se tivessem incendiado o meu lar e matado a minha família? Como veem, também consigo ser um ator do Método.”

As visões políticas (extremistas) de direita de John Wayne não interferiam na sua apreciação como ator nem na estima de vários colegas, que faziam dele uma ideia errada antes de o conhecerem. “Eu gostava muito de Duke Wayne”, disse Lauren Bacall, por exemplo. “De certa forma, esperava que fosse bastante frio e intimidador. Também julguei que entraríamos em choque por ele ser politicamente muito de direita.” (Bogart e Bacall não eram.) “Portanto, fiquei muito surpreendida quando achei o Duke uma pessoa tão calorosa e amigável. Depois de Bogie ser diagnosticado com cancro, Duke, que quase nem conhecia Bogie, foi das primeiras pessoas a enviar desejos de melhoras.”

David Furtado

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