O Último Tango em Paris: “Não me perguntem o que significa este filme”


Quem o disse foi Marlon Brando. Um americano, ‘Paul’, enviuvou recentemente. Em Paris, envolve-se com uma rapariga francesa, ‘Jeanne’ (Maria Schneider). É este o argumento. Segue-se o que não estava no argumento. Ultimo tango a Parigi foi o primeiro filme que o ator completou após O Padrinho (The Godfather). Houve excursões de Espanha com espectadores para ver o filme, que não estava a ser exibido lá. O Último Tango em Paris foi lançado no Festival de Cinema de Nova Iorque a 14 de outubro de 1972. A receção foi uma das mais fervorosas da História do cinema. Estreou em Portugal a 30 de abril de 1974 e só a 16 de janeiro de 1978 surgiu nos ecrãs de Barcelona.

Se há coisa que sempre vendeu bem é o sexo. Este filme não foi exceção; muito antes do lançamento de O Último Tango em Paris, o falatório já era grande.

O Último Tango em Paris deixou-me vazio e exausto, talvez porque, em parte, eu tenha feito o que Bernardo me pediu, e alguma da dor que eu experimentava era a minha própria dor. Por isso, a partir de então, decidi ganhar a vida de um modo menos devastador a nível emocional. Nos filmes subsequentes, deixei de tentar sentir as emoções dos meus personagens como sempre fizera, e apenas desempenhar o papel de modo técnico. É menos doloroso e o público não nota a diferença. Se uma história estiver bem escrita e a nossa técnica for a certa, o efeito não deixa de ser o mesmo: Numa sala escurecida, a magia do cinema toma conta, e o público faz a maioria da representação por nós.”

“Sempre que desempenhei papéis em que se requeria que eu sofresse, eu tinha de sentir o sofrimento. Não o podemos fingir. Temos de encontrar alguma coisa dentro de nós que nos faça sentir dor, e temos de manter esse humor durante o dia, poupando o melhor para o grande plano, sem deitar tudo a perder no plano médio ou no plano por cima do ombro. Temos de nos chicotear para nos mantermos neste estado, permanecer nele, repeti-lo take após take, para nos dizerem, uma hora depois, que temos de lá voltar porque o realizador se esqueceu de alguma coisa. A sobrecarga é enorme.”

Marlon Brando viria a desvalorizar O Último Tango em Paris, embora tenha afirmado: “Este é um filme verdadeiro. E também é humano e poético. Na nossa vida diária, quase tudo é sórdido, escandaloso ou odioso. As coisas demasiado verdadeiras provocam-nos sempre uma sensação de irritação, de náusea, e este filme é verdadeiro.”

Durante a primavera e o verão de 1972, a carreira de Marlon Brando readquiriu a notoriedade devido a O Padrinho. Quando O Último Tango em Paris estreou em Nova Iorque, estavam presentes todos os críticos importantes do país.

A DESINIBIDA MARIA SCHNEIDER

Marie Christine Gélin (Maria Schneider) afirmou que “Bertolucci estava apaixonado por Marlon Brando, e o filme é sobre isso. Nós representávamos os problemas sexuais de Bernardo, na verdade, e até os tentávamos transpor para o filme”. Schneider frisou que sabia do que falava; era bissexual, dormira com 20 mulheres e 50 homens.

“Dei-me bem com Marlon Brando porque somos ambos bissexuais”, acrescentou a atriz. O ator disse a uma revista francesa: “Sim, tive experiências com o mesmo sexo. E não me envergonho disso. Nunca prestei atenção ao que dizem sobre mim. No íntimo, sinto-me ambíguo… de algum modo, falta precisão ao sexo. Digamos que o sexo é assexuado.”

A escolha de Maria Schneider para o papel de ‘Jeanne’ foi consensual para Brando e Bertolucci. Era uma jovem de 19 anos, desinibida, voluptuosa e de sexualidade assumida. Era filha ilegítima de um dos amigos mais antigos de Marlon Brando, Daniel Gélin. Não tinha grande experiência na representação. Conquistou o papel, competindo com outras 200 atrizes porque, quando lhe pediram que se despisse durante o casting, obedeceu com toda a confiança. “Era uma pequena Lolita. Só que mais perversa”, comentou Bernardo Bertolucci, que a atriz considerava mais um gangster do que um realizador e sobre o qual ficou com péssima opinião.

Schneider foi apresentada a Brando e perguntou ao ator qual era o seu signo. Descobriram que eram ambos Carneiro. A atriz viria a recordar a experiência de conhecer Marlon Brando como uma das poucas que o filme teve de positivo na sua vida. Foram ambos para um café, e o ator, tentando desconcertá-la, começou a jogar ao sério, olhando-a fixamente. “É difícil para ti olhares alguém nos olhos durante muito tempo?” “Às vezes”, respondeu Schneider sem pestanejar.

Brando ficou tão impressionado que lhe enviou flores nessa noite, acompanhadas por uma nota em chinês. Maria Schneider perguntou-lhe o que significavam os símbolos, e Brando respondeu, “não te digo”. A partir daí, a relação entre ambos foi quase “paternal” – Schneider só se sentiu realmente indignada quando o ator teve a ideia da “cena da manteiga” durante o habitual pequeno-almoço com Bertolucci antes das filmagens diárias. Embora o sexo no filme seja simulado (e tanto se especulou que não era), a atriz chorou lágrimas verdadeiras. Brando sossegou-a: “Não te preocupes, Maria, isto é só um filme.”

“O realizador, Bernardo Bertolucci era um homem extremamente sensível e talentoso”, diz Marlon Brando, “embora, ao contrário de [Elia] Kazan não tivesse treino prévio como ator e não ponderasse o desenvolvimento dos personagens. Isto simplesmente acontece ou não, embora Bernardo tenha feito algo de invulgar com este filme”.

“De modo geral, os atores têm de se conformar com a história do escritor e assumir as características já criadas por ele. Mas, em O Último Tango, Bernardo adaptou a história aos atores. Queria que eu fizesse de mim mesmo, que improvisasse completamente e retratasse ‘Paul’ como um espelho autobiográfico de mim. Como ele não falava muito inglês e nada sabia sobre o calão americano, fez com que eu escrevesse quase todas as minhas cenas e diálogos, e comunicávamos em francês e por linguagem gestual.”

Os comentários de Brando coincidem com as opiniões dos outros envolvidos, mas certas sequências constavam no guião. O ator esquecia-se frequentemente delas e guiava-se por cartões com as falas escritas. Bertolucci achou que talvez fosse um esquecimento “propositado”, para soar mais espontâneo. Isto bate certo com uma teoria que Peter Falk contou uma vez: Brando usava, por vezes, um auricular, através do qual alguém lhe transmitia as falas. Desse modo, soava espontâneo, não como alguém que tivesse decorado o que ia dizer, acentuando o dramatismo das cenas.

Na altura, Brando andava constantemente ansioso e preocupado com o seu filho adolescente, Christian, que sofria de problemas com drogas e álcool. A mãe, Anna Kashfi, mulher com sérios desequilíbrios, instigara-o a fugir para o México. Marlon Brando interrompeu as filmagens para regressar aos EUA e descobrir o paradeiro do filho, recorrendo a um detetive privado e a um contacto na Interpol. Outro aspeto que motivou o ator foi a relação de amor-ódio que tivera com o pai. Grande parte deste tormento pessoal foi parar aos solilóquios de ‘Paul’ em O Último Tango em Paris.

EXPERIÊNCIAS EMBARAÇOSAS COM “AMENDOINS”

Marlon Brando disse que foi uma das experiências mais incómodas da sua carreira: “Eu ia filmar uma cena no apartamento de Paris em que ‘Paul’ se encontra com ‘Jeanne’, e seria focado em nu frontal, mas estava tanto frio nesse dia que o meu pénis encolheu até ficar do tamanho de um amendoim. Simplesmente murchou. Devido ao frio, o meu corpo retraiu-se por completo, e a tensão, embaraço e stress só pioraram a situação.”

Percebeu que não podia filmar a cena naquele estado, portanto caminhou de um lado para o outro, no apartamento, “à espera de magia”. “Sempre tive uma enorme crença no poder da mente sobre a matéria, por isso, concentrei-me nos meus genitais, tentando obrigar o meu pénis e testículos a crescerem. Até falei com eles. Mas a minha mente deixou-me ficar mal. Senti-me humilhado, mas não estava pronto para desistir. Pedi a Bernardo que tivesse paciência e disse à equipa que não desistia. Contudo, uma hora depois, percebi pelos seus rostos que eles tinham desistido de mim. Como não podia representar aquela cena assim, ela simplesmente foi posta de lado.”

Tratava-se de uma das sequências em que Bertolucci pretendia que Marlon Brando fizesse sexo com Maria Schneider para conferir mais “autenticidade”, o que o ator recusou: “Isso mudaria completamente o filme e tornaria os nossos órgãos sexuais no foco da história. Maria e eu simulámos muitas coisas, incluindo uma cena de sodomia, na qual usei manteiga, mas foi tudo um sucedâneo.”

“Algumas das frases que escrevi para o filme podem provocar certa ressonância nalgumas pessoas: ‘Não me lembro de muitas coisas da minha infância… o meu pai era um bêbedo, um lutador de bares enlouquecido. A minha mãe também era uma bêbeda. As memórias que tenho, enquanto criança, são as de ser preso. Vivíamos numa terra pequena, uma comunidade de exploração agrícola… eu tinha de mungir uma vaca todas as manhãs e noites, e gostava disso, mas recordo-me da altura em que estava todo bem vestido para levar uma rapariga a um jogo de basquetebol e de o meu pai dizer que eu tinha de mungir a vaca… e não tive tempo de mudar de sapatos, e tinha merda de vaca neles quando fui ao jogo de basquetebol…’”

O Último Tango requereu um grande braço de ferro emocional comigo mesmo e, quando estava terminado, decidi que nunca mais iria destruir-me emocionalmente para fazer um filme. Senti que tinha violado o que de mais íntimo havia em mim e não queria voltar a sofrer assim.”

“AS MENINAS MALANDRAS” E AS CRÍTICAS SNOBES

Ingmar Bergman interpretou a obra de modo algo semelhante a Maria Schneider, achava que era a história de dois homossexuais no armário: “Se pensarmos assim, o filme torna-se muito interessante. Excetuando os seios, aquela rapariga, Maria Schneider, é apenas um rapazinho. Há muito ódio às mulheres neste filme, mas, se o encararmos como um homem que ama um rapaz, podemos compreendê-lo. Os participantes teriam sido muito corajosos se o tivessem feito com um rapaz. No estado em que ficou, não faz sentido.”

É um facto que, Bertolucci também não sabia o que pretendia, apesar de, ao longo do tempo, terem surgido várias explicações. À Rolling Stone, Brando afirmou: “Bernardo andou por aí a dizer a toda a gente que o filme é sobre a reincarnação da minha pila. Mas que merda quer isso dizer?”

Pauline Kael escreveu famosamente na The New Yorker que “Bertolucci e Brando alteraram a face de uma forma de arte”. Entre termos como “excitação hipnótica”, Kael deixou-se, como sempre, levar pela sua subjetividade: “O público observa Brando ao longo do filme, com todo o feedback que isso implica, e a sua vontade de ir até ao cúmulo de um estudo de agressão no contexto da sexualidade masculina, e de demonstrar como a força física de um homem dá crédito à insanidade que dela cresce, conferem ao filme uma dignidade maior e mais trágica.”

Kael descreveu assim Maria Schneider: “Quando ela ergue o seu vestido de casamento até à cintura, sorrindo de modo coquete ao expor os pêlos púbicos, passa a integrar a grande tradição cinematográfica das irresistíveis meninas malandras.”

Pauline Kael foi por seu turno criticada, uma vez que tinha assistido a uma versão incompleta de O Último Tango em Paris que mostrava ‘Paul’ de mãos e pés no chão a “ladrar” para afugentar um vendedor de Bíblias que bate à porta do apartamento. Bertolucci cortou a cena durante a montagem. “Pauline disse-me que eu não lhe devia ter feito isso, mas eu nunca gostei dessa cena”, revelou o realizador. “Supunha-se que fosse engraçada, mas era triste e terrivelmente embaraçosa. Demasiado falsa. Nunca vi um vendedor de Bíblias em Paris. Foi uma perversão de argumentista.”

Os académicos interpretaram-no como uma “confissão secular”, com Brando enquanto pecador e penitente. Outros apontaram a influência que os quadros de Francis Bacon tinham em Bertolucci, o que terá supostamente influenciado a iluminação da obra, tornando o ator num mártir de Bacon em agonia.

Há algum fundamento nisto, pois, em outubro de 1971, durante a pré-produção do filme, Bernardo Bertolucci assistiu a uma ampla retrospetiva dos quadros de Bacon em Paris, no Gran Palais. Achando que alguns deles podiam ser usados no início do filme, servindo de metáforas, o realizador levou o diretor de fotografia Vittorio Storaro à exposição, além dos responsáveis pelo guarda-roupa e pelos cenários. O vermelho, o amarelo e o castanho tornaram-se assim as cores predominantes em O Último Tango em Paris, tal como os quadros de Francis Bacon que o realizador preferiu.

RAÍZES

A ideia de O Último Tango em Paris ocorrera a Bertolucci e foi transmitida ao ator por intermédio de um velho amigo de Brando, Luigi Luraschi, dos escritórios da Paramount em Roma. Alice Marchak, secretária pessoal do ator, em quem este confiava, aconselhou-o a estudar a ideia. Foi assim que o realizador de 31 anos se encontrou com a estrela no Hôtel Raphäl, em Paris, na primavera de 1971. Bertolucci, deslumbrado, não conseguiu falar durante um quarto de hora, vendo-se frente a frente com a “lenda”.

Conseguiram entrar em diálogo, e Marlon Brando pediu ao cineasta que, no dia seguinte, lhe mostrasse o seu filme anterior, Il conformista (1970) protagonizado por Jean-Louis Trintignant (ator que tinha em mente para O Último Tango). Marlon gostou e pediu a opinião a uma amiga – e amante de longa data –, Anita Kong. Esta já vira Il conformista sete vezes. Brando perguntou diretamente a Bertolucci, “que ideia tens para mim?” O cineasta explicou-lhe o enredo, o que intrigou o ator.

Durante encontros posteriores, Bertolucci confessou a Marlon que tinha a fantasia de fazer sexo com uma desconhecida, sem saber nada sobre ela, revelando-se inspirado por Louis Ferdinand Céline e Georges Bataille, ambos com noções obsessivas e até perversas sobre o sexo (Bataille era um depravado). O realizador admitiu que queria dar liberdade a Marlon Brando, por conhecer aquilo de que era capaz. “Era um homem misterioso à espera de ser descoberto.”

Lawrence Grobel não conseguia acreditar que Brando não soubesse o significado do filme. O ator insistiu: “Muito é improvisado. Ele queria fazer isto e aquilo… disse mais ou menos o que pretendia e eu tentei produzir as palavras ou a ação. Acho que é sobre a psicanálise de Bernardo Bertolucci. E sobre ele não ser capaz… não sei. Estou a brincar. Acho que ele também não sabia. Ele é muito sensível, mas o sucesso deslumbra-o. Gosta de aparecer, de fazer afirmações audazes.”

NO TRIBUNAL DA MORALIDADE

O próprio Marlon Brando desvalorizou tanto aparato: “Last Tango in Paris recebeu críticas muito boas, embora eu sempre as tivesse achado excessivas. Pauline Kael, em particular, elogiou-o muito, mas penso que a crítica dela revelou mais sobre ela do que sobre o filme. É a melhor crítica de cinema que conheço, mas julgo que se envolveu demasiado subjetivamente na história e criticou o filme segundo o seu conjunto pessoal de valores e preconceitos. A sua opinião foi lisonjeadora, mas não acho que o filme seja tão bom como ela diz.”

Tendo em conta tanta parvoíce acumulada que Pauline Kael escreveu ao longo da vida, tem de se ter em conta a sua importância; ajudou, e muito, a restaurar a reputação de Marlon Brando que, antes de O Padrinho, se encontrava na bancarrota. Kael tinha, imagine-se, um séquito de acólitos – chamavam-lhes os “Paulettes”, críticos que eram uma espécie de megafone das suas opiniões em toda a imprensa norte-americana, propagando-as. A própria United Artists reproduziu a sua crítica inteira a O Último Tango em Paris como manobra promocional. Assim era com Pauline Kael, e Brando não podia dizer abertamente mal de quem esmagou em prosa Al Pacino, John Cassavetes, Clint Eastwood, só para citar alguns.

Não foi só Kael, os “Paulettes” e a United Artists que perderam o tino e se lançaram no tom épico. A Newsweek chamou ao filme “obra-prima genuína de proporções descomunais”. O editor da Time, Christopher Porterfield, sublinhou a “coragem e brutalidade. Cenas íntimas sem precedentes. Nudez frontal, palavrões, masturbação e até sodomia – Bertolucci trata estes temas sem compromissos, com um olhar de voyeur, a selvajaria de um moralista, a finesse de um artista”. Muitos leitores, comicamente, acharam isto um absoluto exagero, cancelaram as subscrições da revista e escreveram para a publicação, explicando, “foi o meu último tango com a Time”…

Nem todos se juntaram ao coro. Alguns críticos chamaram-lhe um “talentoso deboche que dá vómitos”. Um até gozou: “Dá mau nome à manteiga.” Mas foi o maior sucesso financeiro da história da United Artists.

ESPICAÇANDO APETITES DESENFREADOS

Uma das grandes hipocrisias em relação a este filme reside no facto de Maria Schneider, que nunca quisera ser vista com sex-symbol mas como atriz, ter sido arrastada pela “moralidade” e os “bons costumes”. Jogou com uma faca de dois gumes e saiu-lhe o mais cortante.

A prosa alucinogénia não se limitou aos críticos. Até os juristas foram vítimas de acessos de insanidade, o que não é invulgar, 40 anos depois, bem vistas as coisas – quem trabalha com leis não vive entre humanos, definitivamente. Em Bolonha, um tribunal condenou o realizador, Brando, Schneider, a United Artists e baniu a obra, decretando: “Conteúdo obsceno e ofensivo à decência pública. Transmite os instintos mais baixos da libido, dominado pela ideia de espicaçar apetites desenfreados… permeado de linguagem infame.” As cópias foram apreendidas, os direitos civis do realizador foram revogados durante cinco anos e foi sentenciado a quatro meses de pena suspensa.

Os atores não quiseram saber. Maria Schneider revelou ter sofrido um esgotamento depois da estreia do filme. O realizador foi o único a comparecer em tribunal, alegando, através do seu advogado, que “Marlon Brando personifica a queda do Homem. É esta a mensagem de O Último Tango… a besta dentro de Marlon pode também estar dentro de nós, mas somos cobardes e tentamos sufocá-la”.

Em Inglaterra, também correu mal. O Último Tango em Paris foi o primeiro filme a ser julgado sob o Obscene Publications Act – o que não foi em diante, depois de um juiz reparar que se tratava de um filme e não de uma publicação impressa… Nos EUA, a Catholic Conference colocou a obra na lista de “filmes condenados” e, em Cincinnati, foi banido dos cinemas devido à “obscenidade”.

O filme, que pelos padrões de hoje, é uma brincadeira de crianças, lucrou imenso com toda a celeuma. Marlon Brando embolsou quatro milhões de dólares. Várias pessoas acharam que Brando fizera de O Último Tango um veículo para as suas opiniões. Richard Schickel foi um deles; a sua opinião, mais ponderada:

“Isto não é realmente representar no sentido formal, mas um espantoso ato de assertividade. Brando pegou em tudo, nas conceções e equívocos sobre ele mesmo, e nas nossas conceções e equívocos sobre nós mesmos e criou um papel do que originalmente era uma confusão.”

Aos 48 anos, Brando reconquistava, ainda que fugazmente, o título de rebelde erótico, atrativo muito forte na influência que exerceu em milhões de espectadores no começo da carreira. Foi, ainda por cima, nomeado para o Óscar de Melhor Ator, no ano seguinte a ter recusado o de O Padrinho.

É óbvio que, ao longo do tempo, se percebeu que a controvérsia foi o que mais jogou a favor de O Último Tango em Paris. Para os admiradores de Marlon Brando, é um filme fascinante, para os admiradores de Maria Schneider (que sou, se bem que tal não se deva às suas qualidades de representação), também. E Bernardo Bertolucci conseguiu um filme interessante, porque é um bom realizador. O argumento não é desprovido de imaginação e a química entre os protagonistas resultou.

Maria Schneider permaneceu ativa no cinema até 2008, entrando em cerca de 50 filmes, tendo falecido em 2011. A sua carreira pode não ter sido das mais prestigiantes, mas ter-se-á alegadamente recusado a subir na horizontal (o sistema casting couch que sempre se praticou em Hollywood), “prejudicando-se” com isso.

A célebre “cena da manteiga” é outro chamariz e, sem estes ingredientes (passe a expressão), o filme seria facilmente esquecido no meio dos produtos semi-eróticos europeus dos anos 70. Viviam-se tempos de revolução sexual, feminismo, os direitos gay começavam a ser reclamados. Além disso, o filme surgiu após outras obras controversas como Carnal Knowledge (Iniciação Carnal), Midnight Cowboy (O Cowboy da Meia-Noite) e Laranja Mecânica (A Clockwork Orange). O sexo deixava de ser sagrado ou perigoso. E Marlon Brando? Insistiu, em 1994:

“Até hoje, não sei sobre que era o filme. Penso que, enquanto o fazíamos, Bernardo também não sabia, embora, após a estreia, eu tenha lido uma citação sua, em que dizia que se destinava a explorar a hipótese de duas pessoas poderem ter uma relação anónima e sustê-la após esse anonimato ser quebrado e afetado pelo mundo exterior. Mas ele não disse isto enquanto o fazíamos. Era sobre muitas coisas, suponho, e talvez um dia eu saiba quais são.”

Brando disse também, e acertadamente, que se pode compreender muito sobre quem escreve sobre cinema através do que é escrito. Mas esqueceu-se da sua famosa frase, “somos todos atores”. Mas este texto é sobre O Último Tango em Paris, portanto…

Foi irónico que tivesse estreado em Portugal, cinco dias após a Revolução. Foi até indigno. Barcelona, que hoje está na moda e que, por essa altura, era uma cidade suja e fora de moda, teria sido melhor palco. Mas nem sei do que o filme trata. Só sei que ficou na História, por várias razões. E, acima de tudo, por uma grande representação. Que nem isso foi. Razões… Talvez um dia também eu saiba quais são. Ou foram.

David Furtado

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