Viridiana: A humanidade segundo Luis Buñuel


Protagonizada por Silvia Pinal, a obra-prima do cineasta espanhol foi mais um caso em que os poderes estabelecidos tentaram manietar a arte. Pondo de parte o escândalo que provocou, sendo banido em Espanha e denunciado pelo Vaticano, trata-se de uma obra que nenhuma crença ou mesquinhez pode hoje negar, embora permaneça controversa. Venceu a Palma de Ouro em Cannes, mas Buñuel confessou-se triste perante tanta estupidez, por o terem apelidado de “monstro” e de “realizador mais cruel do mundo”.

Luis Buñuel só regressou a Espanha 21 anos depois do fim da Guerra Civil. Embora o regime franquista já não fosse tão austero como em anos passados, a censura permanecia atenta, proibindo quaisquer obras de arte que se opusessem ao regime. Ao realizador, foi concedido um visto de permanência, pelo que ficou durante algumas semanas. Durante a estadia, foi apresentado a Gustavo Alatriste, um homem de negócios mexicano que pretendia investir no cinema, sugerindo que ambos colaborassem num filme.

“Na viagem de barco, regressando ao México, decidi escrever o argumento sobre uma mulher a quem chamei de ‘Viridiana’, em memória de uma santa obscura da qual ouvira falar quando era criança e andava na escola. Enquanto trabalhava, recordei a minha antiga fantasia erótica de fazer amor com a Rainha de Espanha enquanto ela estivesse drogada, pelo que decidi combinar as histórias”, afirmou Buñuel. “O meu amigo Julio Alejandro ajudou-me na escrita, mas alertou-me que teríamos de rodar o filme em Espanha. Aceitei, na condição de trabalharmos com a Bardem Productions, já que tinha a reputação de se opor a Franco.”

Buñuel quebrou o exílio no México para o filmar, numa propriedade nos arredores de Madrid, no final de 1960 e início de 1961. Em maio deste ano, a obra estreia no Festival de Cannes e conquista a Palma de Ouro.

Quando se diz que ‘Viridiana’ (Silvia Pinal) é uma personagem quixotesca, não se foge à verdade. A jovem freira, contrariada e antes de fazer os votos, faz uma visita ao seu tio viúvo, dono de uma grande propriedade. ‘Don Jaime’ (Fernando Rey) pretende casar com ela, devido à sua parecença com a falecida mulher. ‘Viridiana’ recusa, e ‘Don Jaime’ droga-a com intenção de a possuir, acabando por não levar em diante os seus intentos. ‘Viridiana’ porém, fica convencida de que foi violada e que não pode, portanto, regressar ao convento.

O atormentado tio suicida-se deixando a propriedade ao seu filho bastardo, ‘Jorge’ (Francisco Rabal), um homem de preocupações mais “terrenas”. Este tenta que a quinta produza lucros, ao passo que a jovem freira procura, idealisticamente, ajudar os pobres, seguindo os preceitos religiosos, praticando as suas crenças no mundo real. Quando os senhores abandonam a quinta, certo dia, os vagabundos invadem a casa, fazem um banquete e quase destroem parte da habitação.

No regresso, um dos mendigos tenta violar ‘Viridiana’, que é salva por ‘Jorge’. Desiludida com a ganância dos pedintes e confrontada com as realidades e o desfasamento entre a religião formal e a rudeza da vida, ‘Viridiana’ abandona as suas crenças. A cena final parece sugerir-nos que ficou a viver na quinta, numa espécie de ménage à trois com Jorge e a criada ‘Ramona’ (Margarita Lozano).

O filme transformou-se, ao longo das décadas, numa das obras mais admiradas de Luis Buñuel, autor de A Bela de Dia (Belle de jour), de 1967, com Catherine Deneuve. Explico o enredo para que se entenda a reação da Igreja Católica, que, na época, considerou inaceitáveis diversos aspetos do filme. Demarco-me aqui de questões ou opiniões religiosas e encaro o cinema como arte, logo, se pretendemos falar de Viridiana, há que abordar a polémica que o rodeou. Ressalvo que este filme (pelo menos, na minha opinião) não tem o propósito de atacar religiões e crenças gratuitamente, como sucedeu em tempos mais recentes, com resultados catastróficos, para não dizer mortíferos – não há nada de artístico em tais “obras”.

Os censores exigiram desde logo que fossem alteradas ou cortadas cenas; o suicídio de ‘Don Jaime’, a tentativa de violação de ‘Viridiana’ e a cena em que esta queima uma coroa de espinhos. Mas são só alguns exemplos. Os censores assistiram à película sem som ou diálogos. Estes foram adicionados depois da filmagem, quando o cineasta viajou até Paris. É óbvio que, aquando da exibição em Cannes, as autoridades espanholas ficaram chocadas, assim como a Igreja, especialmente tendo em conta que a cena do banquete dos mendigos surgia agora acompanhada pelo Aleluia de Händel.

Ainda por cima, o rebelde Buñuel rejeitara os cortes que lhe tinham imposto. Mas anuiu na cena final – quis terminar o filme com ‘Viridiana’ a bater à porta do quarto de ‘Jorge’, entrando e fechando-a lentamente.

“Tive de inventar outra conclusão e acabou por ser mais sugestiva do que um ménage à trois. ‘Viridiana’ junta-se a um jogo de cartas entre o seu primo e a amante. ‘Já sabia que acabavas por jogar tute connosco’, sorri o primo.”

O jornal italiano L’Osservatore Romano considerou Viridiana “blasfemo e sacrílego”. Em 1963, a polícia italiana apreendeu cópias do filme em Roma e Milão. Em Espanha, sucedeu o mesmo, tendo a imprensa sido proibida de mencionar a obra ou a Palma de Ouro. Durante muitos anos, o filme manteve-se banido em Itália e na Bélgica. Curiosamente, visto que o financiamento foi mexicano, a película foi sendo conotada com este país. Em Espanha, só seria exibida em 1977. Depois da celeuma, Buñuel ficaria impedido de filmar em Espanha durante nove anos; na verdade, só lá filmou mais uma obra, Tristana, em 1970.

A controvérsia gerada por Viridiana provocou a aposentação prematura do responsável máximo do instituto de cinema madrileno, que foi a Cannes receber o prémio.

“A polémica foi tanta”, recorda Buñuel, “que o próprio Franco pediu para assistir ao filme. E, de acordo com o que os produtores me disseram, não viu nele nada de especialmente ofensivo. Afinal, tendo em conta tudo aquilo que ele vira durante a vida, deve ter-lhe parecido de uma inocência incrível. Ainda assim, recusou-se a alterar a decisão do seu ministro”.

“Em Itália, o filme estreou em Roma, onde foi bem recebido”, recapitula o cineasta. “Seguiu-se Milão, onde o chefe do Ministério Público encerrou imediatamente o teatro, confiscou as bobinas e processou-me em tribunal; fui condenado a um ano de prisão se pusesse os pés no país.”

“Quando Vittorio De Sica o viu, na Cidade do México, saiu da sala, horrorizado e deprimido. Depois disso, eu e a minha esposa, Jeanne, saímos para beber um copo, e ele perguntou a Jeanne se eu era assim tão monstruoso e se lhe batia quando fazíamos amor. Ela riu-se e respondeu, ‘quando precisamos de nos livrar de uma aranha, ele vem ter comigo’.”

“Uma vez, em Paris, diante do meu hotel, vi um cartaz que dizia, ‘de Luis Buñuel, o Realizador Mais Cruel do Mundo’. Tanta estupidez entristeceu-me muito.”

No México, o cineasta também foi atacado e incompreendido: “Alguns amigos vieram em minha defesa, e começou um aceso debate, se era traição ou não, eu realizar um filme em Espanha. Viridiana acabou, de facto, por ser filmado em Madrid, numa bela propriedade dos arredores. O orçamento foi razoável, os atores eram bons, e trabalhámos dois meses. Voltei a colaborar com Francisco Rabal e, pela primeira vez, com Fernando Rey e Silvia Pinal. Alguns dos atores secundários mais velhos conheciam-me desde os anos 30.”

Conchita, irmã de Buñuel, viajou com Luis para Madrid, trabalhando como sua secretária: “Durante as filmagens, Luis vivia como um eremita, como sempre. O nosso apartamento ficava no 17º andar do único arranha-céus da cidade. A sua surdez piorara, e ele só recebia pessoas se não o podia evitar.”

“Tínhamos quatro camas, mas ele dormia no chão com um cobertor, um lençol e todas as janelas abertas. Recordo-me de ele sair do escritório muitas vezes durante o dia para apreciar a paisagem: As montanhas à distância, a Casa Campo e o palácio real entre elas. Continuava a dizer que a luz em Madrid era absolutamente única e via o sol nascer todos os dias, sempre que lá estivemos. Falava sobre os tempos de escola e parecia feliz.”

A irmã do cineasta prossegue: “A certa altura, a sua audição melhorou subitamente e começámos a ter a companhia de velhos amigos, estudantes do instituto de cinema, de pessoas que trabalhavam no filme.”

“Confesso que o guião de Viridiana não me agradava, mas o meu sobrinho Juan-Luis assegurou-me de que os argumentos do seu pai eram uma coisa, e o que ele fazia com eles, era outra, observação que se revelou absolutamente correta.”

“Assisti à filmagem de várias cenas e fiquei impressionada com a paciência de Luis. Nunca o vi perder as estribeiras e, mesmo quando um take corria mal, ele limitava-se a repeti-lo até que saísse bem.”

“Um dos 12 pedintes no filme, o chamado ‘leproso’, era, de facto, um verdadeiro pedinte e, quando Luis descobriu que lhe pagavam uma soma três vezes inferior à dos outros, protestou com violência. Os produtores tentaram apaziguá-lo, prometendo que, no último dia de filmagens, se ‘passaria o chapéu’, mas isto apenas o enfureceu mais. Enraivecido, disse que os trabalhadores não deviam ser pagos por contribuições de caridade, exigindo que o ‘leproso’ recebesse um cheque semanal, tal como os outros.”

“O guarda-roupa do filme é autêntico, andámos pelos arredores de Madrid em busca dele, em especial debaixo de pontes, dando a pobres roupas novas em troca dos seus trapos, que foram então desinfetados mas não lavados. Nesta roupagem, os atores sentiam a sua pobreza de um modo bem real. Quando Luis filmava, eu mal o via; levantava-se às cinco da manhã e abandonava o apartamento muito antes das oito, para regressar 11 ou 12 horas depois, para jantar rapidamente e adormecer de imediato no chão.”

“Contudo, houve momentos de descontração, como atirar aviões de papel pela janela aos domingos de manhã. Eu não me recordava muito bem de como se faziam, pelo que voavam de modo bizarro, mas quem fizesse o avião que aterrasse primeiro, perdia. O castigo era comer um avião temperado com mostarda ou açúcar e mel, dependendo das preferências. Outro dos passatempos de Luis era esconder dinheiro em locais improváveis e dar-me uma hipótese de o descobrir através de um método dedutivo – achei isto uma forma eficiente de aumentar o meu salário de secretária.”

Além de ter sido filmado com a maestria que se esperaria de um cineasta como Buñuel, Viridiana conta com uma excelente fotografia a preto e branco de José F. Aguayo e extraordinários desempenhos do elenco (tanto principal como secundário). A moral convencional e falsa está na mira do cineasta. Não se pode negar: Buñuel vê na religião, tal como é pregada e praticada, um conjunto de regras que não fazem sentido junto de seres humanos sujeitos a paixões e outros sentimentos terrenos.

Nunca me agradaram obras de arte politizadas e que dão sermões, sejam políticos ou de outra natureza. Nesse sentido, embora reconheça que a famosa cena do banquete dos mendigos – filmada, a certa altura, como A Última Ceia – e outras sequências possam chocar mentalidades mais rígidas, não considero que haja aqui sermões anticlericais, nem uma intenção propositada de chocar. É claro que Luis Buñuel não era ingénuo e o escândalo era previsível. No entanto, a coesão da obra implica outras preocupações, ou Viridiana não seria o clássico e a obra-prima que a crítica e o público aplaudem, ainda hoje.

Viridiana contém, como a maioria dos trabalhos de Buñuel, elementos profundamente autobiográficos. O realizador nasceu em 1900, em Calanda, na província de Aragón, terra natal de Goya, com quem partilhava a mesma visão do mundo, direta e sem rodeios. Apesar de não ser de uma família pobre, Buñuel, desde logo, testemunhou as árduas condições de vida dos seus conterrâneos. Mais tarde, a família mudou-se para Saragoça, mas continuaria a visitar Calanda, terra que Buñuel descreveria como “um lugar onde a Idade Média durou até à I Guerra Mundial”.

Estes aspetos, entre outros, como a inibição sexual, a culpa e a frustração, preocuparam o cineasta durante muitos anos, e todos podem ser encontrados, de modo mais ou menos explícito, em Viridiana. O mesmo sucede em A Bela de Dia e Este Obscuro Objeto do Desejo (Cet obscur objet du désir) de 1977.

No filme em causa, a personagem de ‘Don Jaime’ sofre destes sentimentos, o que se torna claro com a chegada da sua bela sobrinha. A repressão sexual do tio, após 20 anos de celibato, é-nos exposta, mas ‘Viridiana’, também sofre do mesmo problema, neste caso, compreensivelmente, já que o associa aos ensinamentos de freira. Quando inicialmente chega à propriedade, a jovem traz consigo um crucifixo, uma coroa de espinhos, um martelo e pregos – simbolismo que alude a uma “bagagem” religiosa.

Quando perde o seu idealismo, ‘Viridiana’, julgando que o tio a violou, não se acha digna de regressar ao destino que traçara para si mesma. É então que queima a coroa de espinhos. Não encontro aqui qualquer “ataque” a uma religião, mas sim, o exprimir da dignidade e coerência moral de uma personagem. É óbvio que quem vir esta imagem fora do contexto a julgará como blasfema. Buñuel teve uma educação jesuíta, de cujo fardo se tentou livrar metaforicamente nesta cena (e noutras obras).

No início do filme, é-nos mostrado um claustro e um pátio de arquitetura formal e rígida, pretendendo insinuar a inflexibilidade das doutrinas e, na primeira vez que a vemos, Buñuel coloca ‘Viridiana’ em frente a um dos pilares de pedra, uma comparação indicadora da frieza que a jovem está a assimilar, quando é informada pela Madre Superiora de que ‘Don Jaime’ a pretende ver, antes que faça os votos. Esta impassibilidade parece distante da compaixão exigida pela vida que ‘Viridiana’ pretende seguir.

Já depois da morte de ‘Don Jaime’, a Madre Superiora reage com ira, ao saber que ‘Viridiana’ se sente, em parte, culpada pela morte do tio e pretende exercer as doutrinas cristãs no mundo. É então proscrita por orgulho e acusada de traidora, em vez de ser apoiada ou compreendida pela Madre Superiora, insinuando que a Igreja expulsa os indesejáveis, os que já não podem servir a “causa”.

Contrastando com estes dois personagens, temos o viril ‘Jorge’, que, de início, desperta antipatia, acabando por se humanizar aos olhos do espectador na sequência em que salva ‘Viridiana’. ‘Jorge’ é um pragmático. Nas relações amorosas a sua atitude é idêntica. Quando chega à propriedade, acompanhado pela namorada, ‘Lucía’ (Victoria Zinny), a sua atração por ‘Viridiana’ é instantânea. A companheira acaba por não gostar da brincadeira e abandona-o. ‘Jorge’ diz apenas, “é assim a vida. Umas pessoas juntam-se, outras separam-se. Que podemos fazer, se as coisas são assim?” A solução que encontra é seduzir a deslumbrada empregada, ‘Ramona’…

Outro ponto forte é o facto de Buñuel colocar todos estes personagens antagónicos em relações que só poderão rebentar por qualquer lado. Polémicas à parte, Viridiana é uma obra que sobreviveu devido aos seus méritos. É um retrato, desenhado à revelia, da falibilidade humana e da cegueira a que muitas religiões organizadas conduzem os indivíduos. Luis Buñuel mostra que, num mundo onde a falta de qualidades morais, a ganância, a luxúria, o egoísmo e a fúria são omnipresentes, a caridade e a compaixão parecem deslocadas e, mais do que isso, servem muitas vezes para alimentar as facetas negativas da humanidade.

Obviamente incómodo. Obviamente verdadeiro. Como é costume.

David Furtado

4 pensamentos sobre “Viridiana: A humanidade segundo Luis Buñuel

  1. Gostei muitíssimo. Brilhante. O problema desta jovem é um problema real. É bom ser comentado por alguém que sabe. Gostava que escrevesses sobre outro filme “Música no Coração”, que falava de uma jovem com o mesmo problema de vocação, que teve uma reacção do público totalmente diferente.

    1. Obrigado, mhelena. 🙂 Não sei muito sobre o tema… só o achei um filme plausível, excelente e que não dá sermões nem pró nem contra a religião. Dar sermões, na arte, é fatal e aborrece-me…

      O Música no Coração foi feito para outro público. São filmes muito diferentes! Não faz o meu género, confesso, mas, se surgir oportunidade, poderei escrever. É um clássico, sem dúvida.

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