Anne Sexton: A poetisa favorita de quem não gosta de poesia


No Dia Mundial do Livro, recordo uma poetisa e ensaísta norte-americana, que, apesar de ter vencido o Pulitzer em 1967, entre outros prémios, e de ser reconhecida internacionalmente, não tem qualquer livro editado em português. À imagem de muitos escritores, Anne Sexton é quase uma desconhecida entre nós.

Não acho que escreva poemas públicos. Escrevo poemas muito pessoais, mas espero que eles se tornem no tema central da vida privada de outras pessoas.

É certo que a poesia é um género pouco vendável. Além disso, com a crise que as editoras atravessam, é compreensível, em parte, que não apostem em nomes consagrados internacionalmente, porque não são conhecidos em Portugal. Contudo, esta situação torna-se numa espiral sem fim, e escritores que faleceram há mais de 100 anos permanecem desprezados no nosso idioma.

Sem ter formação académica, Anne escreveu o primeiro poema depois de assistir a um programa de TV, no qual era explicado como se escrevia um soneto. “Também consigo fazer aquilo”, pensou. “Vou tentar.”

O seu psiquiatra concordou: “Não se suicide. Um dia, os seus poemas podem ser importantes para alguém.” Anne tinha quase 30 anos e recuperava de um esgotamento nervoso. Estávamos em 1956. Alguns anos depois, a sua primeira antologia foi nomeada para o National Book Award. Em 1974, aos 45 anos, suicidou-se.

Nascida em Newton, Massachusetts, a 9 de novembro de 1928, Anne Gray Harvey Sexton foi criada num meio confortável de classe média em Weston, Massachusetts, e Squirrel Island, no Maine, embora a sua infância não tivesse sido estável. O pai era alcoólico, e as aspirações literárias da mãe haviam sido frustradas pela vida doméstica. Anne refugiava-se da sua família disfuncional na relação próxima que mantinha com Nana (Anna Dingley), a sua tia-avó solteira, que viveu com a família durante a sua adolescência. A jovem sentia que os progenitores lhe eram hostis e que temiam o seu abandono. Mais tarde, o esgotamento e hospitalização de Nana também a traumatizaram.

Sexton não gostava da escola e a sua incapacidade de concentração e desobediência motivaram os professores a aconselhar acompanhamento especial, o que os pais recusaram. De modo implícito, esperavam que a filha casasse na altura certa e se comportasse com decoro, não querendo que Anne se distinguisse, profissional ou intelectualmente – expectativas que se revelariam frustradas.

Em 1945, Anne ingressou em Rogers Hall, um internato em Lowell, onde começou a atuar em peças teatrais. Era uma rapariga animada e exigente, romântica e popular: a sua beleza e personalidade aventureira atraíam muitos admiradores. Aos 19, fugiu com Alfred «Kayo» Sexton II, embora ele já estivesse noivo.

CATARSE

Seguiram-se anos em que viveram como colegiais recém-casados, por vezes em casa dos pais. Mais tarde, durante o serviço militar de Kayo, na Coreia, Anne tornou-se modelo. As suas infidelidades durante a ausência do marido conduziram a uma fase de psicoterapia. O casal teve uma filha, e Kayo começou a trabalhar como caixeiro-viajante na empresa do pai de Anne. Pouco depois dos nascimentos das filhas (em 1953 e 1955), Sexton foi hospitalizada, sofrendo de depressão pós-parto. A morte de Nana, em 1954, também a angustiou. As tendências depressivas agravaram-se e, durante as ausências do marido, Anne ficava completamente perturbada, tratando mal as crianças. Diversas tentativas de suicídio conduziram a hospitalizações intermitentes. Em 1956, o seu primeiro psiquiatra, Dr. Martin Orne, encorajou-a a escrever, o que viria a ser o ponto de viragem na vida de Anne.

Em 1957, começou a integrar vários grupos de escritores de Boston e foi deste modo que conheceu Maxine Kumin e Sylvia Plath. A poesia tornou-se central na sua vida, tendo estudado com Robert Lowell e John Holmes, começando a receber alguma atenção. Em 1959, Sexton perdeu ambos os pais e a memória das antigas relações problemáticas conduziram a posteriores esgotamentos. Para Sexton, a poesia sempre foi a única via de fuga para uma frágil estabilidade psicológica, embora algumas amizades que fez, no meio literário, tenham conduzido a envolvimentos sexuais. Em abril de 1960, a primeira antologia, To Bedlam and Part Way Back (Quase Regressada da Casa dos Loucosobteve boas críticas e despoletou alguma controvérsia. Nesta época, o seu casamento foi desestabilizado por discussões e maus-tratos, à medida que o marido via Anne tornar-se numa celebridade.

ABRINDO NOVOS CAMINHOS

Em 1962, é publicado All My Pretty Ones. A sua poesia tornou-se imensamente popular em Inglaterra e nos EUA. Anne Sexton escrevia com uma técnica irrepreensível, tornando-se ponto de referência para leitores que se identificavam com os seus medos e angústias. Relatava os pormenores íntimos e ocultos do dia-a-dia, abordando temas que eram, até então, impensáveis num contexto poético: aborto, masturbação, sexo, religião e tendências suicidas.

Na poesia de Sexton também transparece uma vida marcada pelo vício em álcool e estupefacientes, entradas e saídas de instituições para doentes mentais e a morte de familiares. Embora confessional e, por vezes, de difícil compreensão, a sua obra poética explora temas com que o público sempre se identificara. Chegou a ser apelidada de “poetisa preferida de quem não aprecia poesia”.

Em 1967, Sexton foi galardoada com o Prémio Pulitzer por Live or Die, apenas uma das muitas distinções que recebeu: a Frost Fellowship to the Bread Loaf Writers’ Conference (1959), o Radcliffe Institute Fellowship (1961), o Levinson Award (1962), uma bolsa da Academia Americana de Artes e Letras (1963), o Shelley Memorial Award (1967) e um convite para fazer a «Palestra Morris Gray» em Harvard. Obteve distinções da Fundação Guggenheim, da Fundação Ford, doutoramentos honoris causa e foi nomeada professora universitária na Universidade de Boston. Ensinou também poesia em Harvard e Radcliffe, sem ter formação académica.

A carreira notável de Sexton prosseguiu com a publicação de Love Poems (1969), a produção da sua peça Mercy Street na Broadway e a edição de Transformations, em 1972. Em público e nas inúmeras leituras que fazia, Sexton era uma autêntica entertainer: extremamente sedutora e carismática. No entanto, permanecia dependente de amigos íntimos, (de Maxine Kumin, em especial), barbitúricos, amantes e psiquiatras, (tendo-se envolvido intimamente com um deles).

Crises contínuas de depressão, outros distúrbios e tentativas de suicídio algo frequentes, preocupavam a família e os amigos. Em 1973, Sexton pediu o divórcio a Kayo. A partir de então, a sua saúde entrou em declínio, o alcoolismo e as depressões agravaram-se. Sexton continuou com os seus casos amorosos e não abandonou a psicoterapia. Em 1972, publicou The Book of Folly e, em 1974, The Death Notebooks. Divorciada, solitária e em desespero, Anne Sexton suicidou-se a 4 de outubro de 1974, em Boston.

QUASE REGRESSADA DA CASA DOS LOUCOS [1]

Em 1956, os testes psiquiátricos a que Anne se sujeitou, revelaram um Q.I. invulgar e grandes capacidades associativas ao nível da linguagem. O Dr. Orne sugeriu-lhe a escrita como terapêutica, modo de expressão, ou até para ajudar outros indivíduos em circunstâncias similares. Sexton, considerando-se uma iletrada, já que interrompera os estudos bastante cedo, fez um esforço de aprendizagem autodidata, começando a encontrar palavras e padrões de rima que lhe agradavam. Elaborou alguns “exercícios” para mostrar a Orne e para ler nas workshops de poesia de John Holmes, que entretanto começara a frequentar. Era uma revisora infatigável e, pouco a pouco, surgiram alguns dos seus melhores poemas, que viriam a ser incluídos em Bedlam.

Em 1957, pouco depois de ter conhecido Maxine Kumin, Sexton telefonou-lhe: “Escrevi uma coisa… não sei se é um poema ou não. Posso ir até aí?” Ao ler «Music Swims Back to Me», Kumin, uma poetisa mais experiente, ficou espantada.

De facto, este poema, que praticamente não sofreu alterações até ser publicado, era uma voz diferente: uma experiência comum – uma canção que não nos sai da cabeça – sobreposta ao estado extremamente desnorteado em que Sexton fora internada. A música evoca assim uma experiência que não pode ser relembrada, mas sim, reconstruída através do som.

A poesia de Bedlam baseia-se na lucidez de Sexton acerca do sofrimento, o que pode sugerir uma experiência artística perigosa. John Holmes aconselhara-a a não seguir esse caminho, considerando os poemas demasiado íntimos e, inclusivamente, aconselhou Maxine Kumin a afastar-se de Sexton. Esta atitude inspirou o poema «For John, Who Begs Me Not To Enquire Further» – uma tentativa de “fazer as pazes” com um dos seus mentores e de lhe explicar os seus objetivos artísticos. A sua biógrafa publicou excertos de gravações entre Anne e o seu psicanalista, o que causou grande polémica por violar a ética profissional.

Quase Regressada da Casa dos Loucos retrata, com uma linha narrativa mais ou menos linear, a depressão e internamento de Sexton, a par das suas recordações. «Unknown Girl in the Maternity Ward», por exemplo, baseia-se na separação das filhas. No entanto, Sexton contrapõe os laços maternais ao papel de mãe. À medida que ia sendo encorajada, sentia-se mais livre para escrever. Inspirando-se nos quadros que a sua mãe encomendara em Annisquam, trabalhou durante três meses em «The Double Image», incluindo pormenores autobiográficos num poema que viria a ser classificado de “corajoso”, ao narrar a complexidade dos laços maternais.

Os poemas foram publicados em inúmeros jornais de prestígio, a um ritmo cada vez maior. Posteriormente, Sexton organizou-os com extremo cuidado e a antologia foi publicada a 22 de abril de 1960.

A opinião de Robert Lowell era reproduzida na contracapa: “Mrs. Sexton escreve com a invejável abertura e vivacidade lírica de uma poetisa romântica. No entanto, é uma realista na abordagem, e descreve as suas experiências extremamente pessoais com uma abundância e rigor quase russos. Os seus poemas não me saem da cabeça. Não vejo como não poderão causar a grande sensação que merecem.”

De facto, para um livro de poesia, Bedlam obteve excelentes críticas e grande notoriedade, tendo sido nomeado para o National Book Award, entre 13 candidatos – algo pouco usual para uma estreante. Sexton começou a ser tratada como uma estrela, sendo convidada para leituras e aparições públicas. Na época, alguns poemas de Bedlam foram também incluídos numa importante antologia, a par de Hardy, Yates e Lowell.

«Elegy in the Classroom» baseia-se na observação de Robert Lowell, numa fase em que o poeta dava aulas, e Sexton, uma das alunas, lhe pressentia o frágil estado psicológico. «The Farmer’s Wife» é um trabalho impressionista, na sua contenção, expressando os pensamentos reprimidos de uma mulher. Este tipo de poemas fez com que o movimento feminista se tentasse apropriar de Sexton, embora a poetisa sempre se tivesse demarcado de tais ideais. «To Johnny Pole on the Forgotten Beach» é também um retrato em que a voz do poeta não é autobiográfica: “Todos tivemos alguém que morreu naquela guerra”, comentou a autora.

Um dos poemas mais emblemáticos de Sexton, «Her Kind», explora a necessidade de escapar aos estereótipos femininos, tema importante na obra de Sylvia Plath. As duas poetisas sempre tiveram uma admiração mútua e uma relação cordial. Quando ambas frequentavam as aulas de poesia de Lowell, saíam várias vezes para ir beber Martinis no Ritz. Anos mais tarde, quando Plath se suicidou, Sexton ficou devastada, dedicando-lhe o poema «Sylvia’s Death».

“A subjetividade [de «Her Kind»] insiste na separação entre um tipo de mulher (louca) e um tipo de poetisa (uma mulher com poderes de feiticeira): uma duplicidade que expressava o paradoxo da criatividade de Sexton. «Her Kind» não é uma voz que fala através de uma máscara, nem uma narrativa na primeira pessoa, como «The Double Image». Alerta para a diferença entre a dor e a representação da dor, entre a poetisa em palco e na página – desenvolta, encantadora, hábil –, e a mulher que Sexton conhecia muito bem.”[2] O poema desenvolve-se em três estrofes: a feiticeira, a dona de casa e a adúltera. Nenhuma das quais é a identidade verdadeira. Ou será?

Anne Sexton iniciava as suas leituras com este poema, informando o público sobre o tipo de mulher e o tipo de poetisa que era. Entrava em palco com um cigarro e de sorriso taciturno, ar de Lauren Bacall, e vestidos de decote generoso –  ser encarada como objeto sexual fazia parte da atuação. E, numa névoa perpétua de fumo azul, começava a ler: “Parti, feiticeira possuída, assombrando o ar negro, de noite, mais ousada…”

E a sua carreira tinha apenas começado.

David Furtado

(Adaptado do prefácio da minha tradução de To Bedlam and Part Way Back.)


[1] Acerca do título original: To Bedlam and Part Way Back: «Bedlam» é o nome  pelo qual é conhecido o Hospital of Saint Mary of Bethlehem (Belém), em Londres, um asilo de doentes mentais. A denominação pode também ter um sentido pejorativo ou simplesmente coloquial.

[2] Diane Middlebrook, Anne Sexton: A Biography, Houghton Mifflin Co, Boston, 1991, p. 115.

6 pensamentos sobre “Anne Sexton: A poetisa favorita de quem não gosta de poesia

  1. Olá David,

    Anne Sexton era completamente uma desconhecida para mim e graças a este teu post já não o é 🙂
    Lembro-me agora do último Prémio Nobel, que também não tem nenhum livro traduzido em Português. É lastimável que a poesia seja afastada das prioridades, no que toca a traduçoes estrangeiras.

    Abraço

    1. Olá, Miguel. Então, se é assim, só posso dizer que cumpri o meu objetivo. 🙂 Chamar a atenção para alguém de talento que não é conhecido cá por causa disso. O último Nobel decerto terá essa honra agora. Tenho feito o que posso por divulgar outros autores. Obrigado pelo comentário e um abraço.

Comentários:

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.