Beatrice Cenci de Lucio Fulci: Que o Céu a Condene


Lucio Fulci trabalhou em tantos géneros que a sua filmografia se confunde com a própria História do cinema italiano durante 50 anos. Westerns, thrillers, comédias eróticas, o terror, o giallo e o drama histórico. É aqui que Beatrice Cenci se enquadra. Fulci achava-o o melhor filme entre todos os que realizou.

As adaptações da história de Beatrice Cenci remontam a 1908. A história inspirou o enredo de La passion Béatrice com Julie Delpy. Em 1909, 1911, 1926, 1941 e 1956 foram produzidas outras adaptações.

O filme leva-nos à manhã em que a família Cenci aguarda a sua execução por decapitação e desmembramento. O filme vai retrocedendo até ao que motivou a sentença. Os familiares foram condenados pelo assassínio do patriarca, Francesco Cenci (George Wilson), nobre desprezível, sádico e avaro, cujos alvos prediletos da brutalidade eram os familiares. A filha Beatrice (Adrienne Larussa), tentara fugir, optando por se refugiar num convento. A solução do pai foi enclausurá-la nas masmorras do castelo.

O pai só a manda ir buscar quando “celebra” a morte de dois filhos num banquete a condizer com a sua natureza devassa. Quando a filha surge enlutada e vestida de negro, despoleta a ira do pai que a viola. Beatrice conspira então com o criado, Olimpio (Tomas Milian) assassinar o pai, com a corroboração da família.

A trama é descoberta depois de torturados os restantes familiares. Tanto o criado como Beatrice nada revelam. Os verdadeiros culpados aqui são a Santa Sé e o Papa, que ambicionam adicionar o vasto legado patrimonial dos Cenci ao seu tesouro. Visto que se tratou de um parricídio, por lei, o património vai para as mãos clericais e… para o sobrinho do Papa.

Ao amanhecer do dia 11 de Setembro de 1599, na Ponte de Sant’Angelo, Beatrice é decapitada. O povo de Roma seguiu o cortejo fúnebre da vítima, sem rezar ou pedir clemência, apenas chorando. Assustado (com a cobardia típica da Igreja ao longo dos séculos), o Papa absolveu Beatrice após a sua execução. Durante meses, os populares depositaram coroas de flores no túmulo de Beatrice Cenci. É um dos episódios mais brutais de injustiça ocorridos já no período final da Inquisição e um retrato tenebroso da Igreja Católica. Os restos mortais de Beatrice Cenci encontram-se na Igreja de San Pietro em Montorio.

UMA FUGA DO PURGATÓRIO

Talvez devido ao facto de ser subestimado toda a vida, Lucio Fulci se sentisse atraído pela injustiça. Apesar dos conhecimentos técnicos que adquirira (qualidade que ninguém lhe negou) e da sua capacidade narrativa, não era fácil narrar a história de Beatrice Cenci. Convém recordar que Fulci começou a carreira como argumentista e sempre procurou ser autor dos guiões que filmava.

Este traço é muitas vezes esquecido entre apreciadores de cinema: O do realizador/argumentista. A Fulci permitiu, como refere o estudioso da sua obra, Paolo Albiero, trabalhar “em géneros populares e cinema comercial, conferindo-lhes sempre uma marca de autor”. É um paradoxo da personalidade do realizador: Afirmou que queria fazer carreira neste “exílio”, “gueto” ou “purgatório”, como descreve Albiero, se bem que fosse um homem culto e inteligente que frequentava os círculos intelectuais de Roma.

Assim se compreende, em parte, que, ao fim de uma década praticamente a realizar comédias populares, Fulci tenha saído deste “purgatório” do comercialismo para realizar Beatrice Cenci, em 1969, escrevendo-o em pareceria com Roberto Gianviti, argumentista prolífico, autor de inúmeros filmes que hoje são marcos do gialli, polizieschi e western spaghetti das décadas de 50 e 60 e 70. Gianviti faleceu em 1999 num anonimato quase total. (A IMDb informa erradamente que faleceu em 2001 e não refere a data de nascimento.) Gianviti colaborou muito com Fulci em diversos géneros.

E por primor técnico que haja em Beatrice Cenci, existe também (10 anos antes do sucesso no terror em Zombi 2) um sadismo raramente visto nos ecrãs da época, nomeadamente nas cenas de tortura perpetradas pela Inquisição.  

O título dado no Brasil foi Que o Céu a Condene, denominação apropriada, visto que os homens aqui foram incapazes, particularmente os do clero, provocando a ira da população. Nunca inspirando sentimentos ambíguos entre os atores, o realizador não teve bom relacionamento com os seus protagonistas, Tomas Milian (que denotava alguns comportamentos de divo) e especialmente Adrienne Larussa.

Milian já tinha reputação de ser, também ele, difícil, e o problema com Larussa derivou de hostilidade no set. A atriz tinha uma cena de nudez no contrato, mas Fulci arranjou-lhe uma dupla que não era propriamente esbelta, era gorda. Fê-lo de propósito, sorriu sarcasticamente à atriz e virou costas.   

Beatrice Cenci teve obviamente problemas com a censura, o que aconteceu ao realizador com frequência neste período. (Eram quase todos…) E alguns deles permanecem censurados. Os gritos de “morte ao realizador” ouviram-se nos cinemas devido ao teor anti-Católico do filme. 

O FANTASMA DE BEATRICE

Raras vezes a Igreja Católica foi retratada com tanto desdém num ecrã. Fulci, já de si um extremo opositor do catolicismo, das suas históricas hipocrisias e horrores, nunca iria pôr rédeas à expressividade e virulência. A época é retratada sem contemplações; o suor a pingar dos rostos, um homem quase devorado até à morte por cães, os advogados a discutir moralidade com prostitutas (Fulci é tão irónico…) e as cenas de tortura.

A pujança dos cavalos fazem tremer a câmara e o fedor das masmorras e dos miseráveis chega a repugnar. No meio disto, Adrienne Larussa é a imagem bela da desafiadora Beatrice. Quando a condenada sai para enfrentar o seu destino, Fulci inunda o seu rosto de luz – não vejo aqui crítica a fé ou crenças religiosas, muito pelo contrário. O que não há no filme é a fé apregoada por “organizações”.

Fulci deixa apenas em aberto uma questão: Será que Beatrice usou o amante para planear o assassínio ou amava-o realmente? A duplicidade feminina era um tema que abordava com frequência. Não o desvendar talvez tenha sido astuto.

O destino atroz de Beatrice Cenci tornou-se simbólico para o povo de Roma, um exemplo da resistência perante a arrogância da aristocracia. Para além do filme de Lucio Fulci, foi lembrada ao longo dos séculos por Stendhal, Alberto Moravia, Alexandre Dumas ou Antonin Artaud, nas letras. O pintor Caravaggio, que assistiu à execução, ter-se-á baseado no que viu para um dos seus trabalhos.

No 500º aniversário da sua morte, em 1999, a Cidade de Roma descerrou uma placa na Via di Monserrato, no lugar por onde passou e que já não existe, rumo ao cadafalso. Nela lê-se: “Vítima exemplar de uma justiça injusta.”

Beatrice Cenci deu origem a uma lenda: Diz-se que todos os anos, na noite antes do aniversário da sua morte, regressa à ponte onde foi executada, trazendo a cabeça numa das mãos. Crime sem perdão ou pecado sem mácula? Tudo depende do modo como encaramos a Igreja, instituição responsável pela morte e destruição de tantas ou mais almas do que aquelas que proclama ou proclamou salvar. Que o Céu a condene já que sou um simples mortal.

David Furtado

Comentários:

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.