Faces de John Cassavetes, ou como se faz um filme sem dinheiro


… e se conseguem três nomeações para Óscares. “Tornou-se mais do que um filme; tornou-se um modo de vida”, disse o realizador acerca desta obra que foi a sua entrada em cheio no cinema, o auge da sua carreira e o resultado da sua determinação. Completamente produzido fora do sistema, o filme foi “aceite” por Hollywood.

Estreado em 1968, Faces (Rostos) foi elogiado como “obra-prima dos nossos tempos” e nomeado para três Óscares. 45 anos passaram e é difícil – impossível – negarmos o impacto que ainda hoje detém. O filme teve um longo período de “gestação” pois foi filmado em 1965 e, só três anos depois, John Cassavetes conseguiu forma de o lançar. Isto explica-se se recuarmos um pouco no tempo.

Em 1963, após o infortúnio de a A Child Is Waiting (como já aqui relatei), John ficou desempregado. Revoltado com o que o produtor Stanley Kramer fizera ao seu filme, Cassavetes encostou-o literalmente à parede e, como se sabe, circulam sempre histórias. Kramer era influente e poderoso, e constou que o realizador o tinha agredido.

Além do mais, quando há “diferendos criativos”, a regra em Hollywood é mantê-los entre portas. Cassavetes tornou pública a situação, sendo encarado como um proscrito, visto que a carreira importa mais do que o trabalho e quem tem o poder é o estúdio e o produtor. Foi rotulado de imprevisível, de não ser digno de confiança e de ser um incompetente como realizador. Demoraria algum tempo a provar que isto não era verdade.

O realizador vivia agora numa grande casa em Hollywood Hills com a mulher, Gena Rowlands, e o filho, sem trabalho e, pior ainda, sem perspetivas de o conseguir. O único ganha-pão no lar dos Cassavetes era Rowlands, que foi continuando a trabalhar em cinema e TV, mantendo a reputação intacta. Em casa, John tomava conta do filho e, sobretudo, tinha muito tempo para pensar. Durante esta fase, tentou a escrita de um romance. Abandonou-o e dedicou-se a anotar ideias e fragmentos. Seria Faces.

Don Siegel veio em seu auxílio. Desde que o dirigira em Crime in the Streets (Juventude em Perigo), eram amigos. Siegel arranjou ao ator um papel na TV. Seguiu-se outro, no cinema, em The Killers (Contrato para Matar) baseado na obra de Hemingway.

Don Siegel estendeu-lhe uma cópia do argumento, à porta de casa de Cassavetes, e este disse: “O que foi? Dói-te a mão? Não preciso de ler o script. Se queres trabalhar comigo, eu faço-o.” Siegel respondeu que, se não o lesse, não o contratava. “Não interessa o que eu penso do guião. Preciso do dinheiro. Memorizo as minhas frases e serei um bom rapazinho.”

Siegel veio embora a pensar que o amigo era um “complicado dos diabos”, mas o trabalho em The Killers resultou bem. O único problema era que Cassavetes interpretava um piloto profissional, e o seu modo de conduzir era errático: Cotovelo na porta, a olhar para o lado, não sabia por que havia de alterar a mudança ao dar uma curva, não punha as mãos no volante… enfim. Teve de receber lições de condução de um duplo.

Siegel tentou agir em defesa de Cassavetes junto de Lew Wasserman, da Universal, para outros projetos, mas John estava queimado no negócio. Porém, não estava propriamente disposto a pôr em causa a sua integridade artística.

Por conselho de um amigo, Maurice McEndree, John começou a desenvolver o que escrevera dois anos antes – apenas um esboço de uma cena sobre dois amigos falando sobre os “velhos tempos”.

Amargurado, frustrado e atormentado por emoções contraditórias, num só mês escreveu 215 páginas, transformando um mero fragmento numa “imensidão de ataques à classe-média americana da época, uma expressão de horror perante a nossa sociedade em geral”, nas palavras do próprio autor.

No início, Cassavetes pensou em encenar uma peça. Quando reuniu os atores John Marley, Val Avery, Fred Draper, Seymour Cassel, Elizabeth Deering e Gena Rowlands, a receção foi tão entusiástica que o elenco o convenceu de que se poderia tornar num filme, realizado como Shadows (Sombras), de modo independente.

A história teve vários títulos e só na pós-produção se viria a intitular Faces. Cassavetes procurou Al Ruban que se dedicara ao género sexploitation em Nova Iorque, desde que ambos tinham colaborado em Shadows. Ruban mostrou-lhe o seu último “trabalho”, Sexploiters. “Como ele se riu… apertava o nariz e tentava evitar o riso ao mesmo tempo, pelo que ficou da cor de uma beterraba!”, diz Ruban.

Gena Rowlands soube que estava grávida, tendo de recusar o papel de ‘Maria Forst’ e encarnar ‘Jeannie Rapp’. Cassavetes precisava de uma substituta para os ensaios e pediu à secretária de Robert Altman, Lynn Carlin, que viesse ajudar. Altman era, nessa época, outro realizador frustrado como Cassavetes e trabalhavam no mesmo edifício da Screen Gems. Altman ficou furioso quando Cassavetes deu a Carlin o papel de ‘Maria’ e despediu-a!: “Estás doido? Ela nem como secretária é boa!” A situação tem contornos humorísticos, mas John não falou a Altman durante anos. Quando Carlin foi nomeada para o Óscar de Melhor Atriz Secundária, presume-se que Altman tenha engolido em seco.

As filmagens de Faces avançaram sem que nenhum dos atores recebesse um cêntimo de antemão. “Usámos as nossas poupanças, deixámos os nossos amigos exaustos, comíamos esparguete todos os dias”, recorda Al Ruban. Lynn Carlin assinou o contrato num guardanapo durante um jantar, dando a John Cassavetes completo controlo do filme em troca de uma percentagem dos lucros, se os houvesse. Décadas depois, espantada, Carlin começou a receber cheques regularmente.

A firmeza de John mantinha-se inabalável e compreendia que não quisessem trabalhar com ele, nestas circunstâncias: “Se peço a alguém para fazer uma coisa em meu proveito, não me devo desapontar se não o fazem com o mesmo empenho que eu”, disse o realizador à The Film Director and Superstar. “Mas se peço a alguém para fazer alguma coisa para nosso mútuo benefício, até às últimas consequências, ou seja, um filme do qual todos gostamos, há uma boa hipótese de conseguirmos algo que valha a pena.”

Al Ruban ensinou aos técnicos como manusear o equipamento durante as três semanas de ensaios. Cassavetes foi buscar uma câmara Eclair à Universal por ser mais apropriada do que a Arriflex para a técnica de câmara à mão (sem suportes) modo como filmou quase todo o filme. Se não havia dinheiro para cenários… era simples. Filmou em sua casa e, para variar um pouco, em casa da sogra, Lady Rowlands, além de algumas cenas no Loser’s Club.

O enredo de Faces desenrola-se ao longo de 12 horas e foi rodado em seis meses, entre 2 de janeiro e julho de 1965. Os participantes tinham os seus empregos diurnos, pelo que muito foi filmado de noite. John Marley, por exemplo, trabalhava no teatro. Às 17:00, a equipa chegava a casa de Cassavetes, o elenco, por volta das 18:00. Seguia-se hora e meia de ensaio. Sem noções pré-concebidas, John começava a filmar, por vezes, a meio do ensaio.

Como não havia marcas no chão para que os atores se posicionassem, a liberdade dos movimentos da câmara obrigava os técnicos a enfiarem-se debaixo de mesas ou a esconderem-se atrás de portas, para não ficarem no plano. Dando largas à imaginação, Cassavetes esgotava, de uma vez só, as bobines de 16 mm de película, cuja duração média era de 10 minutos.

Este método de trabalho quase obsessivo fez com que Al Ruban, quase a dar em doido por estar encarregado de tantas tarefas, batesse o pé. Passou para o cargo de diretor de fotografia, e George Sims tornou-se o operador de câmara. “John não explicava o que queria”, diz Ruban, que considera Faces o seu filme favorito em que colaborou com Cassavetes.

“Ele andava às voltas, sem nunca ir direto ao assunto. Eu ia mudando pormenores como a iluminação. Nunca pensei que insistisse nos grandes planos durante tanto tempo. Ele queria entrar dentro das pessoas, fazer com que se revelassem. A performance era tudo para John. Os atores adoravam isso.”

Cinco ou seis horas depois, já todos demonstravam alguma fadiga. John, não. Reescrevia, filmava novos takes. “A emoção foi improvisada, as frases, não”, disse o cineasta que era intrépido com os atores. Quando Lynn Carlin enfrentou dificuldades em chorar numa cena com Seymour Cassel, Cassavetes chamou Seymour à parte: “Tens de esbofeteá-la com força.” Cassel assim fez, e Lynn Carlin apanhou um valente susto. A cena resultou porque Cassel entendeu as intenções de John, de querer eliminar o bloqueio emocional em que, muitas vezes, os atores caem.

Outro ator que ia entrando em parafuso foi Val Avery. Estava há quatro horas a trabalhar e preferia ir juntar-se ao amigo Ben Gazzara, que o convidou para beber uns copos num bar de Hollywood. Cassavetes nem quis saber disso. Incumbiu Seymour Cassel de uma estranha missão: Furar dois pneus do automóvel de Avery. Pela calada, Seymour assim fez. Quando voltou, murmurou a Cassavetes que Val não ia lado nenhum…

No instante em que Avery viu o seu carro vandalizado, percebeu logo quem era o autor, embora não tivesse saído de casa. “John, grego filho da mãe, anda cá fora que te dou uma tareia!” Cassavetes saiu e enfrentaram-se. Mas Val Avery começou-se a rir perante a incongruência de tudo aquilo. Abraçaram-se e o trabalho recomeçou. John viria mesmo a dizer que foram os melhores tempos da sua vida.

Empolgado com o trabalho dos atores, Cassavetes até lhes gritava a meio dos takes, o que desconcentrou John Marley, pouco habituado a tais manobras. “Por amor de Deus, John, não faças isso! Estragaste tudo!”

Até o leiteiro, sim, o leiteiro que aparecia de manhã na casa dos Cassavetes, obteve uma percentagem. Entregava pão, ovos, queijo e leite. Só que John gastara tudo o que tinha em película. De acordo com Lynn Carlin, “ele já lhe devia umas centenas de dólares. Por isso, teve uma conversa com o homem. Perguntou-lhe se queria investir no cinema. E deu-lhe uma percentagem!”

Depois de ter furado os pneus a Val Avery, Seymour Cassel não perdeu pela demora. Na sequência em que tem de fugir, saltando para o telhado e do primeiro andar da casa dos Cassavetes, correndo depois pelo caminho abaixo, foi-lhe pedido novo take. John pediu outro take. Cassel, obediente, filmou uma data de takes até que, esbaforido, subia o caminho, já sem forças, e ouviu risos. Cassavetes rebolava no chão a rir: “Conseguimos filmar à segunda, Seymour!…”

O guião, pelos padrões da indústria, era enorme: 320 páginas. Foi filmada uma quantidade descomunal de película: 150 horas. Um problema na sincronização do som obrigou a quatro meses de trabalho exímio para que cada sílaba condissesse com o movimento dos lábios dos atores.

No verão de 1965, Cassavetes foi pai novamente, desta vez de Xan. Já despendera 50 mil dólares do seu bolso em Faces, e o custo total seria de 225 mil. Por isso, nesta fase, surgiu com regularidade no grande ecrã: The Dirty Dozen (Doze Indomáveis Patifes), Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo), papéis em TV e até a protagonizar um filme série b de motociclistas, Devil’s Angels.

Num infortúnio tragicómico, enquanto John editava o filme, o cão entrou na sala de montagem, arrancou o filme da máquina e defecou em cima da película. Nem isto deteve Cassavetes, que a lavou cuidadosamente. Para Al Ruban, foi a última gota: “Não aguento mais isto! Vou para casa!” “Não, espera aí…” Ruban ficou espantado: “De alguma forma, os excrementos do cão tinham apagado a emulsão da película. John riu-se e disse-me, “olha, até o cão é um crítico!” “Como é que eu podia ir embora? Aquele tipo passou literalmente por merda por causa do filme.”

Faces foi progressivamente cortado, e o tempo de duração reduzido até 1h50m. Houve vários visionamentos e reedições. Cassavetes não estava satisfeito. Quando pego na cópia de DVD do filme, tenho a estranha sensação respeitosa de que é mais do que isso – é um triunfo que envolveu uma dedicação quase demencial.

A sinopse não soará muito original, descrita rapidamente: É a história de um casal, ‘Richard’ e ‘Maria Forst’ cujo casamento já deu o que tinha a dar; as conversas ao pequeno-almoço são ríspidas, quando o silêncio não toma o seu lugar e, ao fim do dia, pergunta-se como correu o dia. ‘Forst’, um homem de negócios bem-sucedido (produtor cinematográfico, não fica bem explicado), conhece ‘Jeannie Rapp’ num bar com um amigo.

Quando ‘Richard’ chega a casa, diz que está farto e quer o divórcio. Isto aprofunda o vazio das suas vidas e, quando o marido sai de repente em busca de ‘Jeannie’, deixa ‘Maria’ destroçada. Todo o precário equilíbrio parece agora definitivamente destruído. ‘Maria’ sai com as amigas e conhece ‘Chet’ (Seymour Cassel) um jovem desinibido. Regressam todos a casa dos ‘Forst’, e ‘Maria’ e ‘Chet’ acabam na cama.

Na manhã seguinte, ‘Richard’ acorda ao lado de ‘Jeannie’, e ‘Chet não consegue acordar ‘Maria’, que tomou uma overdose de comprimidos. O jovem tenta reavivá-la e consegue a muito custo. É quando chega o marido, ‘Richard’, fazendo com que ‘Chet’ fuja apressadamente, saltando para o telhado. O filme acaba com o irado ‘Richard’ e a infeliz ‘Maria’ fumando nas escadas.

A filmagem a preto e branco, o aspeto granuloso da película e todas estas emoções verosímeis tornam Faces numa obra de um imediatismo brutal. Ainda hoje a consideram a obra-prima de John Cassavetes. Nos anos 60, Hollywood procurava mostrar os tumultos sociais, do assassínio de Kennedy aos direitos civis, os direitos das mulheres, a Guerra do Vietname, os movimentos juvenis. Cassavetes deu uma volta de 180 graus, focando o status quo, um casal de classe média-alta que conquistou o ambicionado Sonho Americano, vive uma vida oca, sem sentido e a detesta.

O adultério, os rituais de acasalamento, as lutas entre machos pelas mulheres, a incapacidade de comunicar com o sexo oposto, os encontros sociais vistos como rituais hipócritas e sem nexo que distorcem os comportamentos, tudo isto é o assunto de Faces, que, desenfreadamente, nos mostra ações e reações contínuas que qualquer pessoa, com o mínimo de experiência de vida, reconhece, já testemunhou ou teve conhecimento.

Numa cena, ‘Florence’, a menos atraente das amigas de ‘Maria’, quer que ‘Chet’ a beije. Cassavetes ficou tocado com a genuinidade do ato e da reação. “Ela não se importa como é patética e ridícula. O que interessa é que tentou. Lutou e meteu os pés pelas mãos. E não é melhor lutar por concretizarmos as nossas fantasias, lutar e perder, do que nos ficarmos a lamuriar pelos cantos?” A sequência foi muito aplaudida pelo público feminino: Acharam que Cassavetes retratava as coisas como elas são e não estereótipos ou irrealismos.

Tendo surgido após a insipidez de Too Late Blues, o filme anterior de John Cassavetes, Faces foi acertadamente apelidado de “virulento” por um crítico. São praticamente oito cenas de diálogo, sem estrutura narrativa convencional… quando o vi, fiquei emocionalmente esgotado, como se fosse alimento para feras, como uma vez se disse acerca de Maggie de Stephen Crane, no sentido depreciativo.

Cassavetes desconfia das palavras, da linguagem, mostra atitudes machistas e os clichés “as mulheres são todas umas prostitutas”, frase citada no filme. Os homens querem manter-se atraentes face ao sexo oposto, as mulheres preocupam-se com a perda da beleza, as emoções são reprimidas, os instintos também. Tudo isto ilustrado por inúmeros close-ups, planos aproximados de rostos, Faces.

O filme parece espontâneo, mas, nalgumas sequências, foram filmados 52 takes, com John Cassavetes a exigir a Fred Draper “uma coisa diferente”. “O quê?” suplicava Draper quase desesperado.

Cassavetes pretendia criticar os personagens que retrata, mas a crueldade dissipou-se à medida que começou a compreender os seus comportamentos. Percebeu que infligiam uma tortura pior a si próprios do que aos outros. Eram pessoas inseguras, desesperadas por afeto e aprovação. Conteve os juízos de valor. Porém, o olhar do cineasta é mais compassivo para com as mulheres de Faces.

Tendo em conta a natureza pura e dura de Faces, a sua receção foi surpreendente. Começou na Europa. Foi um dos filmes a concurso no Festival de Veneza, exibido sem dobragem ou legendas, deixando, mesmo assim, a crítica estupefacta e em admiração. A obra venceu cinco prémios.

Isto inspirou a curiosidade do Festival de Cinema de Nova Iorque. Os responsáveis adoraram, e Cassavetes, astuto, insistiu que fosse exibido na prestigiante noite de encerramento do certame. O realizador conseguiu também um contrato de distribuição, em certa medida, ironicamente, pois tornara-se uma estrela de cinema nos anos 60, protagonizando filmes para financiar Faces.

Nomeado para um Óscar como ator por Doze Indomáveis Patifes, John Cassavetes consegue a proeza de ser nomeado no ano seguinte na categoria de Melhor Argumento por Faces. Para não roubar o protagonismo a Seymour Cassel e Lynn Carlin, também nomeados, não compareceu na cerimónia. Para um filme realizado totalmente fora do sistema, foi uma autêntica façanha.

A publicidade gerou críticas consensuais e altamente elogiosas, Faces foi exibido em Nova Iorque 20 semanas consecutivas, gerando 400 mil dólares de lucro num só cinema.

Faces não perdeu a força. É um filme didático. Até nos mostra, entre muitos outros comportamentos, algumas motivações que residem por detrás de redes sociais como o… Facebook.

David Furtado

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