8 Milhões de Maneiras para Morrer: Algumas razões para o reapreciar


8 Million Ways to Die é daqueles filmes subestimados dos anos 80. É um clássico da Era, uma espécie de film noir lançado quando a estética Miami Vice estava no auge. Para este estatuto, contribuem vários fatores, começando com a interpretação de Jeff Bridges, passando pelo argumento de Oliver Stone e a realização de Hal Ashby.

Sim, há 8 milhões de histórias na cidade nua. Lembras-te daquele programa de TV? Sabes o que temos nesta cidade? Temos 8 milhões de maneiras para morrer. Bem, deixemos as tolices e vamos ao trabalho. – ‘Matt Scudder’ (Jeff Bridges)

O filme foi o último a ser realizado por Ashby, autor de clássicos como O Último Dever (The Last Detail, 1973) com Jack Nicholson, O Regresso dos Heróis (Coming Home, 1978) e Bem-Vindo Mr. Chance (Being There, 1979) com Peter Sellers e Shirley MacLaine. O realizador faleceu em 1988, aos 59 anos. O seu momento de glória (no que toca a Óscares) veio sem ser no cargo de realizador (embora fosse nomeado nesta categoria) quando venceu o galardão pela Melhor Montagem por No Calor da Noite (In the Heat of the Night, 1967).

Oliver Stone acabara de completar a adaptação de um romance policial passado em Nova Iorque, O Ano do Dragão (Year of the Dragon, 1985) e anteriormente já escrevera o argumento de Scarface com Al Pacino. Estava prestes a começar a carreira de realizador em cheio, com Platoon, e os seus guiões já denotavam uma coesão e um estilo pessoal identificável.

Tais traços surgem em 8 Milhões de Maneiras para Morrer, outra adaptação à qual Oliver Stone se dedicou, baseando-se nos romances de Lawrence Block sobre o ex-polícia ‘Matt Scudder’, que decorrem na Hell’s Kitchen nova-iorquina. Existe um “relativismo moral” em ‘Scudder’, como apontou um crítico, que o torna um herói quase perfeito para Oliver Stone.

O filme sofreu diversos reveses – o argumento de Stone foi reescrito e bastante alterado por Robert Towne, e o cenário da história mudou de Nova Iorque para Los Angeles. As arestas do personagem foram limadas, tornando-o mais agradável para grandes audiências. Contudo, a primeira coisa a chamar a atenção é o grande desempenho de Jeff Bridges: Um polícia que se afasta do Departamento do Xerife de Los Angeles depois de ter abatido um suspeito que “apenas” empunhava um taco de basebol. O alcoolismo de ‘Matt Scudder’ provocou esta mortífera precipitação.

Interrogado pelos Assuntos Internos, ‘Matt’ diz que o suspeito empunhava um Louisville Slugger, os agentes não sabem o que é, pelo que Matt responde com sarcasmo, “um taco de basebol, seu filho da puta… burro de merda”. Esta reação hostil perante os investigadores mostra-nos que ‘Scudder’ é um maverick mas esconde um tormento mais profundo: Ninguém se sente mais culpado do que ele por ter alvejado mortalmente um pequeno traficante na cozinha, diante da família. Tal é o impacto, que o polícia acaba por descarrilar.

Na manhã seguinte, vemo-lo em casa, deitado no muro, de tronco nu e completamente embriagado. Cambaleando pelo jardim, depois de recusar a ajuda da esposa, ‘Scudder’ não consegue encarar o olhar preocupado da filha. Nestes momentos, ainda que fugazes, é magistral a forma como Jeff Bridges dá corpo ao personagem. O polícia abandona então o Departamento e, quando o reencontramos, já não bebe há seis meses e fala numa reunião dos Alcoólicos Anónimos (organização que colaborou com a produção):

“Ser bêbedo custou-me o meu trabalho, a minha casa, a minha saúde, já não sou chui… já não estou casado com a Linda… o meu fígado… devem viver ratos lá, aquilo parece queijo suíço. Mas tenho isto… e vocês… e é um começo. E tenho algo que nem o álcool me tirou… serei sempre o pai da Laurie. E… só gostava que ela estivesse tão grata por isso como eu.”

Tentando recompor a vida, trabalhando em biscates como apanhar quem fugiu à fiança, ‘Matthew’ recebe uma estranha mensagem para comparecer na casa de um traficante de droga, ‘Angel Maldonado’ (Andy Garcia), e quem o chamou foi ‘Sunny’ (Alexandra Paul, que se celebrizaria em Baywatch),  uma prostituta que quer abandonar a “vida”. ‘Scudder’ prontifica-se a agir de intermediário junto do chulo, ‘Chance’ (Randy Brooks), mas é ultrapassado pelos acontecimentos. ‘Sunny’ é assassinada.

Novamente atormentado pelo complexo de culpa por não ter salvo uma vida, ‘Scudder’ reincide no alcoolismo. Ao recuperar, está decidido a descobrir o assassino, contando com a ajuda do hostil/hilariante ‘Chance’ e da prostituta de fachada rude mas com coração de ouro, ‘Sarah’ (Rosanna Arquette). Nos diálogos estabelecidos entre ambos, repletos de palavrões, nota-se o toque Oliver Stone. ‘Scudder’ tem de a forçar a colaborar, e a relação entre ambos não começa facilmente:

Sarah: Isto é rapto, bêbedo. Espero que estejas sóbrio para…

Matt: Vamos trocar acusações? Para prostituta de merda, és uma mulher extremamente arrogante.

Os dois acabam num bar e depois em casa de ‘Matt’. A dinâmica entre Arquette e Bridges é notável; ‘Sarah’ começa quase de imediato a provocá-lo. ‘Matt’ consegue domar a fera, não bebe e é a prostituta que acaba embriagada. De manhã, têm uma conversa mais interessante:

Sarah: Não és um bêbedo cretino, afinal.

Matt: Obrigado.

Sarah: Acho que te julguei mal. És só um porco oportunista que até fodia a lama se ela se mexesse. Mas deixa lá, não és diferente da maioria dos homens, não leves a mal.

Matt: Minha senhora, ninguém pode levá-la a mal… é muito simples. Vomitaste-me em cima… e meti-te no chuveiro. Quando vomitaste em cima de mim, é como pôr sal no rabo de um pássaro. Ele não voa, eu não fodo. Regra da casa. Nunca te toquei.

Sarah: És um filho da puta.

Matt: Estou a subir na vida, ainda agora era um porco oportunista. Para tua informação… mexes-te mais como cimento do que lama.

Sarah: Como sabes como me mexo na cama?

Matt: Se calhar, julguei-te mal. E tu a mim, é o mais provável.

Rosanna Arquette é uma das atrizes que nos provoca nostalgia pelos anos 80, e a sua interação com Jeff Bridges é um dos pontos altos do filme.

‘Scudder’ acaba por desabafar com a compreensiva ‘Sarah’, depois de quebrado o gelo: “Sabes o pior dessa doença? É que… perdes essa proximidade com as pessoas que mais amas. É difícil pedir ajuda. Para mim, é.”

Por esta altura, já nos apercebemos que o assassino de ‘Sunny’ é ‘Angel’, Andy Garcia no papel autenticamente viscoso de um traficante de cocaína. As cenas que protagonizou com Jeff Bridges, de tão hostis, despertaram uma repugnância pessoal mútua. Garcia é adequado ao papel, embora tenha momentos de histeria e um número excessivo de tiques que tornam o personagem caricatural. ‘Angel’ é um psicopata, mas também um megalómano com bom gosto – pretende construir para si um palacete ao estilo de Gaudí, e as suas deambulações sobre o génio catalão são, no mínimo, inesperadas.

É certo que há alguns clichés em 8 Milhões de Maneiras para Morrer, e o modo como o projeto foi conduzido desagradou a Oliver Stone. O argumentista viu o seu trabalho modificado, primeiro por Towne e depois por Hal Ashby, que se livrou do guião e quis que os atores improvisassem. Stone apenas visitou o set uma vez e, mais tarde, quis que retirassem o seu nome dos créditos do filme.

Refira-se que se encontra a ser produzida mais uma adaptação de um thriller de Matt Scudder, baseado no livro de Lawrence Block, A Walk Among the Tombstones, com Liam Neeson no principal papel.

8 Milhões de Maneiras para Morrer foi alvo de várias críticas, de chauvinista a pouco original, básico e piroso, entre outros epítetos. A banda sonora de James Newton Howard parte de um motivo interessante, mas a sonoridade 80’s é, por vezes, intrusiva. Apesar de tudo, comparado com a maioria dos filmes de ação ou crime produzidos hoje em dia, revela uma substância surpreendente. Chamar-lhe-ia até uma pequena obra-prima do cinema policial. Há bastante humor e uma agradável falta de pretensiosismo, com Jeff Bridges a elevar notavelmente a fasquia.

Bridges foi subestimado durante muitos anos, ironicamente, pois não parece estar a representar. No papel de ‘Scudder’, parece trabalhar de dentro para fora, ou seja, procurando um motivo que racionalize o seu alcoolismo no mundo exterior. No desvendar do caso da prostituta que não salvou (e também no relacionamento romântico que estabelece com ‘Sarah’), o ex-polícia encontra um modo de se redimir. A inteligência que Jeff Bridges confere ao desempenho é subtil – um dos seus grandes trunfos como ator. Quando o vemos a coxear, pálido, mas decidido a encontrar uma resposta para esta história, uma entre as tais 8 milhões, Bridges humaniza o personagem e dá-lhe uma dimensão que não é comum encontrar em filmes desta natureza.

A meu ver, as críticas negativas de que foi alvo querem que o filme seja algo que não é nem pretende ser, ocorrência bastante comum. O input de Oliver Stone no resultado final terá sido “mínimo”, segundo o próprio, mas também se desconhece o contributo do veterano Robert Towne, responsável por outro film noir moderno, Chinatown. O próprio Clint Eastwood foi alternando durante anos a fio entre filmes dirigidos ao grande público e outros mais pessoais. A grande reclamação parece ser a seguinte: Com um realizador destes, um elenco e um argumentista destes, o resultado inevitável teria de ser obrigatoriamente O Padrinho.

Ao longo das décadas, 8 Milhões de Maneiras para Morrer foi conquistando um estatuto de filme de “quase culto” por ter estado indisponível em DVD até 2011. Durante anos, foi um clássico do VHS, um filme de entretenimento visualmente enraizado nos anos 80, mas que merece uma reapreciação.

No final, ‘Matt Scudder’ chega a uma conclusão simples, não foi ele que criou o mundo em que vive, por retorcido que seja. O problema não reside só na sua personalidade.

David Furtado

2 pensamentos sobre “8 Milhões de Maneiras para Morrer: Algumas razões para o reapreciar

  1. David !
    Até conseguir relembrar o nome de Rosanna Arquette, e em qual filme ela protagoniza com o Jeff Bridges, foi algo ! Tudo ficou claro quando ao juntar os dois nomes no buscador do Google, quando encontrei tua página.
    Aqui, fica presente tudo aquilo que suplanta a superficialidade, e que traz identificação mútua, no encontro com a sensibilidade. Afinal, o próprio sistema hollywoodiano acaba por se tornar um moinho, enquanto muitas vêzes tentamos entender a própria percepção, para além das questões de mercado e amnésia decorrentes.
    Soma-se à inerência, os processos ideológicos pelos quais a humanidade está sendo afligida, e, no caso do Brasil, de uma maneira sempre grosseira, patrulhesca, pois padecemos da Revolução Cultural, também, aonde acontece toda a sorte de desconstruções, da falta de reconhecimento de valores, do desrespeito aos direitos autorais, e, do entendimento da boa arte.
    Felizmente, a internet ainda permite a parlamento cultural, rico e sem preconceitos.
    Parabéns !
    Contente em ter encontrado luzes no âmbito de nossa língua, pela tua pessoa !
    Abraço !
    Regis Thalheimer

    1. Oi, Regis!

      Obrigado. Ainda bem que gostaste. Admiro muitos talentos, acho o cinema uma arte, embora não tenha paciência para fenómenos da moda ou imagens construídas. É coisa que não falta. Muitos esquecem-se que é um negócio onde a maioria alinha com o lado do dinheiro. 95% promoção e a tendência é para piorar.

      Tenho uma ideia um pouco diferente do Brasil, devia haver mais espaço para todo o tipo de ideias e pontos de vista. É um país com grande cultura, boa música. Cinema conheço pouco, admito. Mas na música têm grandes talentos.

      A Humanidade está a passar um mau bocado. A informação em catadupa não facilita a comunicação. Confunde-se as duas coisas. Não sei se isto é um “parlamento”, mas já houve aqui discussões mais interessantes que no parlamento português, o que também não é difícil…

      Um abraço!
      David

Comentários:

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