Ratboy de Sondra Locke: Um conto de fadas dos tempos modernos


Para Sondra Locke, representar exclusivamente com Clint Eastwood em tantos filmes teve os seus prós e contras. Por um lado, testemunhou o processo de fazer cinema em todas as áreas, da escolha dos atores à montagem, pós-produção e mistura de som. Como adorava todas estas fases, Locke começou a pensar em realizar. Um conto de fadas agridoce enraizado no mundo real foi a resposta. A realizadora explicou ao Wand’rin’ Star como o filme foi concebido.

No início, apesar da reação estranha que Clint Eastwood viria a ter, este pareceu satisfeito com a ideia de a companheira realizar, embora nunca tivesse lidado bem com o facto de Locke trabalhar com outras pessoas além dele. Ela encontrou um script de que gostou e aplicou-se a ele.

O argumento chamava-se Ratboy: “Era um conto de fadas adulto e peculiar, uma sátira social em vários aspetos sobre uma jovem chamada Nikki, que está tão obcecada com a fama e a fortuna que fica ofuscada perante os valores reais da vida. Ela encontra, por acaso, uma criatura, meio rapaz, meio rato, e decide que ele será o seu passaporte para as ‘luzes da ribalta’. É claro que o pequeno e inocente Ratboy quase é quase morto neste processo, mas, apesar disso, ao estilo de A Bela e o Monstro, ele apaixona-se por ela, e através do seu puro amor por ela, Nikki tem um ‘despertar’.”

Enquanto ela tem um despertar, o destino de Ratboy é… é melhor verem o filme.

Sondra Locke disse ao Wand’rin’ Star:

“Houve vários elementos que me atraíram no script de RATBOY. Cresci a adorar contos de fadas, e RATBOY é uma espécie de conto de fadas moderno. Tem um tom misto de comédia e drama, tom esse que adoro num filme. Passa-se em Hollywood com um tema de falsos valores, e há muito que eu encarava Hollywood como sendo um centro de falsos valores. E, por fim, é sobre ser diferente, sobre não nos integrarmos. Isto foi algo que senti pessoalmente e entendi desde a infância, tendo crescido numa pequena cidade do Tennessee.”

Ratboy combina vários temas e estilos; mostra a indiferença e hipocrisia da sociedade, a ânsia por ser o centro das atenções, que permanece atual e supostamente irá resolver todos os problemas da vida das pessoas. Mostra como ser diferente sobressai neste jogo sombrio.

A nível de realização, Locke é capaz de grandes cenas com atmosfera, como a sequência em que Nikki conhece Ratboy. Demonstra muita promessa. O final também é doce. O filme merecia um público mais vasto.

Sondra Locke relata como foi representar e realizar pela primeira vez:

“Fiquei entusiasmada quando a WB concordou em produzir RATBOY comigo a realizar. O único requisito foi que eu também representasse no filme. De início, achei uma ideia assustadora. De que modo podia fazer isto no primeiro filme que realizava. Achei que realmente não tinha escolha, pelo que concordei. Revelou-se um pouco menos difícil do que o esperado. Como a história é contada em grande parte do ponto de vista da minha personagem, eu podia usar o meu desempenho para conduzir o ritmo da história, etc. Descobri que uma das técnicas que uso como realizadora é analisar o script e ‘entrar’ no ponto de vista de cada personagem – como se eu interpretasse cada uma delas. Desta forma, consigo entender a história de todos os pontos de vista. E assim, ao desempenhar Nikki, o processo de ‘representar’ a personagem foi apenas mais um passo em diante.”

Sondra Locke discutiu o script com Eastwood, que deu a sua aprovação. Isto facilitou as coisas – significava que WB “não podia” recusá-lo. Como estreante na realização, Locke sabia quão difícil seria a tarefa. Terry Semel era na altura presidente da WB e um acordo foi rapidamente concretizado. Como Locke afirma no seu livro, “com Clint do nosso lado, pode ser tão simples quanto isso”.

Locke esclareceu este ponto ao Wand’rin’ Star:

“Ao mesmo tempo, senti-me encorajada, pois sabia que eles não investiriam dinheiro a menos que também achassem que eu estaria à altura. A WB tinha sido o meu principal estúdio desde o meu primeiro filme, O CORAÇÃO É UM CAÇADOR SOLITÁRIO. Achava que tinha fortes relações lá além dos relacionamentos de Clint. Claro que os relacionamentos de Clint superariam sempre os meus, como trunfos. Foi algo que, mais tarde, aprendi demasiado bem.”

RATOS E HOMENS

Patrick McGilligan (Clint: The Life and Legend, p. 380) chama a Ratboy “uma estranha fábula sobre um roedor meio humano, uma aberração da natureza, em perspetiva, um cruzamento entre E.T. e O Homem Elefante“.

E.T. era o alienígena querido, ao estilo de Spielberg, para diversão familiar. O Homem Elefante – baseado numa história verídica, que também inspirou parcialmente O Monstro de Stephen Crane – enraíza-se numa realidade mais terrível. O filme de Locke difere de ambos.

Fizeram-se algumas comparações entre Ratboy e Willard de Daniel Mann, que Locke protagonizou em 1971. A realizadora não encontrou quaisquer paralelismos na altura em que realizou o seu próprio filme.

Terry Semel queria que Sondra Locke protagonizasse Ratboy. De acordo com McGilligan, Locke mostrou-se pouco à-vontade quando tentou explicar em entrevistas o modo como conseguiu a aprovação do projeto. Alegou que a “ligação a Eastwood” não convenceria necessariamente a WB. Se alguém quiser ler sobre o comportamento de Clint Eastwood durante este período, aconselharia os livros de McGilligan e Locke.

Ao longo dos anos, a maioria dos fãs de Eastwood descartaram rapidamente Ratboy, considerando-o um mau filme. A obra tem uma classificação alta na Amazon, apesar da versão VHS disponível, que a realizadora considera “terrível”. Sondra Locke disse ao Wand’rin’ Star:

“Apesar de Clint ter incentivado o meu projeto inicialmente, toda a sua atitude mudou quando ficou claro que eu realmente esperava tomar decisões como realizadora. Parecia que ele esperava que eu simplesmente obedecesse a ordens dele, que ele iria realizar o filme por mim. Quando a WB aprovou a produção, isso não incluía, de todo, a participação de Clint. Ele apenas deu a sua garantia. Eu não esperava que ele se envolvesse, exceto em apoiar-me, por acreditar em mim e se preocupar comigo. Certamente, não esperava que ele assumisse o controlo totalmente, mas foi o que ele fez. Eu queria ser julgada para o bem ou para o mal, pelas minhas próprias ideias, e estava preparada para o que daí resultasse. Foi inesperado e emocionalmente doloroso devido à nossa relação pessoal. Eu não conseguia entender ou acreditar no modo como ele me tratava por causa daquilo.”

Quando Locke assumiu o papel de realizadora, Eastwood começou a lutar contra todas as decisões de Locke. E conseguiu “matar” cerca de metade do filme. Já que me concentro nos aspetos criativos do filme e não na mesquinhez e maldade de Eastwood (que é abundante), algumas coisas ficarão por dizer.

Locke sabia que realizador e produtor são muitas vezes inimigos naturais, portanto, não achou boa ideia ter Clint Eastwood como produtor. Locke afirma que isto não foi sinal de ingratidão – é óbvio que tentava restabelecer o respeito profissional e a independência criativa. Tal como disse ao Wand’rin’ Star:

“Achei que ter Clint formalmente envolvido, com crédito no ecrã, seria contraproducente a um dos meus objetivos, que era voltar a trabalhar por conta própria para colocar um pouco de espaço entre nós profissionalmente. Por muito que tivesse gostado de trabalhar com Clint, e por muitas oportunidades que me tivesse dado, também criou a impressão de que eu não devia ser levada a sério. Eu estava lá porque era amante do Clint. Raramente me davam crédito pelo trabalho que fiz com ele. E todos tinham esquecido todo o trabalho que fizera antes de conhecer Clint.”

Muitos outros tiveram a mesma opinião, dizendo, tanto a Locke como a Eastwood, que talvez fosse melhor se ele não pusesse “o seu nome” no trabalho. Mas Eastwood não quis ouvir. Locke prossegue:

“Clint argumentou comigo que não colocaria o seu nome no filme como produtor, apenas o nome da sua empresa, a Malpaso. É claro que Malpaso era sinónimo de Clint. Todos na indústria sabiam disso. Não importava o que lhe dissesse, ele insistia que seria como ele queria. Não tive nenhuma escolha exceto ceder, mesmo sabendo que seria um ponto importante contra mim, no que toca a validar os meus esforços.”

Sondra Locke queria trabalhar com uma equipa de pessoas diferentes, mas como entidade produtora, Eastwood (a Malpaso) insistiu que ela usasse todos os seus colaboradores habituais. Seria outra coisa que identificaria o filme como um projeto de Eastwood. A situação começou a assumir contornos de “pesadelo”. Tudo o que Locke tentava fazer estava “errado” sob o ponto de vista dele. Quando a realizadora tentou que Gordon Anderson contribuísse de alguma forma para o filme, a resposta de Eastwood foi: “Não podes fazer isso, isso é nepotismo!” E disse-o com os dentes cerrados.

A situação nada tem de divertido, mas é um pouco ridícula. Locke respondeu: “Usaste o Kyle e a Alison em papéis maiores do que este, e eles nem sequer tinham representado antes.” (Sondra Locke, The Good, the Bad, and the Very Ugly: A Hollywood Journey, p. 194.)

A reação dele foi uma surpresa, já que quisera contratar Anderson para o papel que Sam Bottoms desempenhou em Bronco Billy, mas Anderson não estava interessado. Contudo, Clint argumentou que nunca usara os seus filhos no seu primeiro filme. Locke disse-lhe apenas que “o nepotismo não se define pelo momento em que ocorre”… Seja como for…

O DESIGN

Muitos anos passaram, e ao ler sobre isto no livro de Locke, ficamos com a sensação de que estava a lidar com um menino mimado. Por inexperiente que fosse enquanto realizadora, as decisões de Sondra Locke soam acertadas nos dias de hoje. Mesmo a nível pessoal: “Tive muito cuidado para proteger o elenco de tudo o que se passava entre mim e Clint”, afirma.

A realizadora escolheu Sharon Baird para interpretar Ratboy. Baird era uma “profissional há muitos anos, que fora um dos Mousketeers originais do Mickey Mouse Club. Desde então, adquiriu muita experiência em vários espetáculos infantis, trabalhando em trajes quentes e maquilhagem pesada, semelhante à que seria necessária para Ratboy. Além disso, era muito pequena, do tamanho perfeito”, escreve Locke no seu livro.

Isto não é de menosprezar. O homem encarregado da maquilhagem em Ratboy foi Rick Baker, que vencera um Óscar, cinco anos antes, pelo seu trabalho inovador em Um Lobisomem Americano em Londres. Locke ficou empolgada quando Baker aceitou o trabalho. E tem boas recordações da colaboração:

“Rick quis que eu contribuísse muito na conceção original do aspeto de Ratboy. Pedi algumas coisas, mas Rick é um talentoso maquilhador e designer e estava 95% certo quanto à minha ideia do aspeto de Ratboy. Hoje, poderia ser feito muito mais com a CGI – os movimentos faciais de Ratboy etc. –, mas tendo em conta as limitações das máscaras e maquilhagem para cinema da época, fiquei muito feliz. Claro, os artistas de maquilhagem no set passavam muitas horas de tormento todas as manhãs da produção para aplicar a maquilhagem.”

Portanto, Locke estava no caminho certo. Eastwood achou Baird errada para o papel; era suposto ser o “Ratboy, não a Ratgirl!” e alegou que percebia que o pescoço da criatura era de uma mulher… a reação de Sondra Locke é hilariante: “Quem podia saber como era o pescoço de um Ratboy, afinal?”

Inacreditável.

GUIÃO DESASTRADO

A realização de Ratboy foi uma luta constante: Eastwood não permitiu alterações ao argumento, recusou-se a deixar que Locke contratasse David Alan Grier; interferiu no uso de, pelo menos, um local de filmagem que Locke pretendia (a casa da Nikki). A realizadora explica:

“A sua necessidade de me controlar parecia arbitrária e irracional. Por exemplo, não me deixou escolher o local que eu queria para a casa de Nikki. Era estritamente uma decisão criativa. O local que eu pretendia era uma casa grande, outrora grandiosa, mas que agora se encontrava velha e degradada. Sugeria que a família da Nikki tivera algum dinheiro noutros tempos, e agora ela tentava reivindicá-lo. Além disso, tinha muitos ângulos interessantes e visualmente satisfatórios, com um jardim por aparar, etc. Este local não teria custado à produção mais dinheiro do que o local que Clint insistiu que eu usasse – uma pequena casa semelhante a um apartamento, com pouco de distinto, a nível visual. A insistência dele não fazia sentido, apenas queria impor a sua vontade.”

Locke nem sequer pôde usar o compositor que queria para a banda sonora. Clint escolheu, ele mesmo, um compositor, e o trabalho que esta pessoa concebeu era tão exagerado “que o público do pré-visionamento se riu da música”, afirma Locke. Teve de ser posta de lado.

Na fase de montagem, só podemos imaginar a irritação de Locke quando Eastwood espreitava por cima do seu ombro, obrigando-a a cortar todas as “esquisitices” do filme. Então por que motivo Clint se envolveu? Mais valia ter ficado fora do caminho.

Os suspeitos do costume – pessoas que veem um Deus em Eastwood – podem encarar esta situação como um conflito entre duas pessoas, mas nem os outros envolvidos apreciaram a abordagem e “contributo” de Eastwood. Sondra Locke explica:

“Estou sempre aberta a ouvir as ideias das pessoas em meu redor. Achei que o script precisava de algum trabalho, pelo que o mostrei a alguns amigos e colegas. Sabia que Ratboy era uma peça muito especial e excêntrica que Gordon realmente ‘entenderia’, por isso, ele foi uma das pessoas a quem mostrei o script.”

Locke tinha concordado com algumas alterações ao guião, sugeridas por Anderson. A realizadora achou que conferiam mais carácter e excentricidade ao argumento. Quando Eastwood se recusou a autorizá-las, Locke – para confirmar se estava ou não a ser objetiva – mostrou-as secretamente a alguns dos outros envolvidos na produção. Aparentemente preferiam a versão de Locke. Quando Christopher Hewitt, o treinador de voz de Ratboy no filme, leu as alterações, disse: “Adoro estas frases; por que não estamos a filmar este material?” “Os Golds, encarregados de fazer os trailers, concordaram: ‘O primeiro script é um pouco desastrado, mas este é ótimo.’”

Uma das alterações que Gordon Anderson fizera ao script consistia na inclusão de uma frase. É quando ‘Nikki’ saca de uma arma e diz, “Vá lá, Dirty Harry, faz-me ganhar o dia!” Não surpreende que Eastwood tenha adorado esta adição, e foi a única frase nova que permaneceu.

Prefiro não mencionar muitas situações relacionadas com o comportamento de Clint Eastwood durante este período. Estão bem documentadas nos livros de Locke e Patrick McGilligan. Variam entre o desprezível e o odioso. Quando Eastwood percebeu que Locke tinha o controlo de um projeto que realmente queria fazer, e possuía ideias precisas quanto a isso, tentou estragá-lo o mais que pôde.

Quando leu as alterações que Locke fizera ao script, e de acordo com Fritz Manes, Clint ficou roxo: “Nunca o vi tão fodido.” Eastwood tinha escrito “‘FODA-SE – BROCHISTA – MERDA’ em todas as páginas”, disse Manes. (Patrick McGilligan, Clint: The Life and Legend, p. 386.)

Locke pensou que esta reação se devia ao facto de Eastwood ter finalmente entendido que eram muito diferentes em termos artísticos. Totalmente opostos. Ela seria “uma pequena cópia decalcada” e ele seria “um mentor”. Até aí, tudo bem. Mas reescritas NÃO estavam nada bem. Desde que Locke fosse a atriz e realizadora, e ele lhe desse ordens, tudo correria pelo melhor. As verdadeiras lutas começaram quando Locke estava encarregada de um filme. McGilligan sugere que os problemas sérios só surgiram quando Sondra Locke começou a sair do casulo de Eastwood.

O PRIVADO TORNA-SE PÚBLICO

Durante a primavera de 1986, Sondra Locke filmava Ratboy enquanto Clint andava ocupado com a sua campanha para ser eleito mayor de Carmel. Estava tão envolvido nos problemas da cidade que tinha uma alcunha por lá, “o Fantasma de Carmel”. Ratboy foi um teste para Locke e Eastwood. Quando vemos o filme hoje, parece que o único esforço que ele fez foi no sentido de estragá-lo o melhor que pôde, enquanto Locke o tentava fazer o melhor possível, lutando com todas as pressões pessoais e profissionais inerentes.

Fritz Manes estava numa posição difícil – era amigo de longa data de Clint, bem como produtor de Clint, mas também era produtor de Ratboy e amigo de Locke, tanto quanto podia. Na época, a realizadora não pôde fazer as alterações no script consideradas necessárias devido à interferência constante de Eastwood. “Mas ele insistiu que eu expandisse a parte inteira da perseguição policial constante no guião, à qual eu queria retirar importância por achá-la uma coisa de um filme diferente.” “Há umas partes estranhas e inconsistentes. Foi com isso que fiquei realmente ressentida no input dele, e com as quais ainda estou ressentida.” (Autobiografia de Locke, p. 408.)

O grito de independência de Sondra Locke veio em má altura para Clint Eastwood, já que este construía as bases da sua preparada aclamação crítica. Não surpreende que tentasse abafar Ratboy. De facto, ele conquistou essa aclamação, mas terá valido realmente a pena, se só a pode partilhar com fanáticos cegos da sua “obra” e com pessoas que, dê por onde der, nunca questionam o mercado?

A VOZ DE RATBOY

Sondra Locke ficou muito agradada com dois aspetos de Ratboy: Há uma cena em que Nikki e Ratboy sopram bolas de sabão juntos. Foi secretamente escrita por Gordon Anderson no dia antes de ser filmada. Eastwood gostou muito da cena e elogiou-a. Disse a Locke que era a sua cena favorita do filme. Não sabia que fora Anderson a escrevê-la. Outra participação secreta de Gordon Anderson foi enquanto a voz de Ratboy.

Nenhuma das pessoas escolhidas pelo diretor de elenco satisfez Locke, que sabia que o efeito se perderia, caso a voz soasse a um desenho animado. Como disse ao Wand’rin’ Star:

“Eu sabia que Gordon a poderia fazer porque era bom em vozes de personagens invulgares. Quando representara em Nova Iorque, fez alguns filmes publicitários em que teve de retratar animais e personagens de banda desenhada, etc. Pedi a Gordon para me dar uma ideia de como achava que Ratboy soaria. Gostei muito mais do que todos os intérpretes vocais que tinham feito uma audição, tanto que a gravei sem usar o nome dele. Sabia que Clint não aprovaria se soubesse que era a voz de Gordon. Eu estava surpreendida e perplexa com as objeções infantis e irracionais de Clint quanto ao meu desejo de usar os talentos de Gordon em qualquer aspeto. Ele sempre gostara de Gordon e muitas vezes perguntara quais as opiniões e ideias dele no passado. Por exemplo, Gordon escolheu a música de circo para Bronco Billy. Novamente, parecia arbitrário e uma questão de controlo sem nada que o fundamentasse.”

“Para provar que tomava uma decisão objetiva, selecionei uma gravação de cerca de 40 intérpretes de vozes prestigiados, os quais testara, incluindo secretamente a voz de Gordon entre elas. Quando mostrei a gravação da audição a Clint, o diretor de elenco, Fritz e mais alguns, todos eles – incluindo Clint – sem saberem, escolheram a voz de Gordon como a melhor. Clint ficou com cara de pau quando soube. Mas o que podia ele fazer? Tinha sido uma escolha unânime.” (Sondra Locke, The Good, the Bad, and the Very Ugly: A Hollywood Journey, p. 197.)

Locke admitiu que “as primeiras projeções de Ratboy foram incrivelmente dolorosas”. “Se alguma vez me sentira vulnerável como atriz, não foi nada de semelhante a ser responsável por todo o resultado final. Seria tão confortável desfilar pelo cinema nua como ficar ali sentada a ver como o público reagia a um filme que realizei.” (Idem, p. 197 e p. 198.)

“Foi ainda mais doloroso porque pude ver todas as coisas que queria mudar, e que não me tinham deixado”, acrescenta.

A realizadora nunca esqueceu a antevisão de Ratboy em Seattle. Sentindo-se exposta e ansiosa, apelidou-o de experiência “atroz”. Contudo, Locke orgulhar-se-ia sempre de Ratboy, apesar das suas lacunas. É um filme irregular. Revi-o numa versão VHS pan & scan, de ecrã 4:3, o som é mau e a imagem deixa bastante a desejar. Mas obviamente, devido à animosidade entre a WB, Clint e Sondra Locke, o filme ainda não está disponível em DVD. Não vejo outro motivo. A WB tem tanto lixo em DVD, com extras e versões do realizador… Ratboy, que realmente merecia ser restaurado, não foi.

“Recentemente, fui a uma universidade local, onde me pediram que assistisse a Ratboy e falasse do filme. Foi doloroso suportar a exibição da cópia em VHS – a única disponível atualmente. Estava desprovida de toda a beleza fotográfica original, que, a meu ver, captara tão bem o aspeto de Hollywood e Los Angeles. Ver aquelas imagens com as margens cortadas foi profundamente deprimente. É uma experiência que não repetirei. Anseio que a WB, pelo menos, edite a versão original do filme em DVD, mas isso pode não acontecer.”

Sondra Locke revela também que quaisquer takes alternativos ou material passível de compor uma versão da realizadora pode ter sido perdido: “Duvido que haja material preservado.”

RECEÇÃO CRÍTICA NA EUROPA

A realizadora de Ratboy admite que o filme teve um destino pouco consensual. Obteve maior aclamação na Europa, onde as pessoas pareceram entendê-lo.

“Foi convidado a integrar o Festival de Cinema de Deauville, em França, onde os críticos absolutamente o adoraram e elogiaram, para lá do que alguma vez imaginei. Pareceram ‘captar’ todas as entrelinhas por que tanto lutei. Ainda hoje fico surpreendida com os seus comentários. ‘Corram para ver o filme’, disseram. ‘Um filme irrepreensível de uma cineasta verdadeira e corajosa’, ‘um filme lúcido e comovente’, ‘Sondra Locke demonstra forte personalidade como realizadora e uma sensibilidade rara… um filme requintado, inspirado, magistral, pungente’, a revelação do Festival de Cinema de Deauville de 1986. Este filme subtil e comovente é um conto de fadas agridoce e perspicaz’, ‘uma joia de filme’.”

Ratboy também obteve ótimas críticas do Le Monde, Liberation, Le Figaro, Pariscope e da Cahiers du Cinéma. A Europa, desconhecendo as batalhas de bastidores, acolheu o filme, algo que muitas vezes acontece a cineastas americanos que se tornam expatriados no sentido artístico.

Locke ficou entusiasmada com esta receção. Telefonou a Eastwood de França, dizendo-lhe que Ratboy recebera aplausos de pé. A resposta foi um silêncio seguido de um resmungar: “Que bom. E então, quando regressas a casa?”

RATBOY REGRESSA A CASA

Nos EUA, o filme foi recebido com menos entusiasmo. Locke já sabia que o “carimbo” da Malpaso daria aos críticos uma hipótese de atacar a obra e a ela, em especial. Apesar disso, a realizadora obteve uma crítica elogiosa do LA Times e apareceu no programa Today da NBC. A WB não soube comercializá-lo corretamente, pelo que teve exibições limitadas em Los Angeles e Nova Iorque.

A “Estátua da Intolerância” como lhe chamou Lou Reed, ainda se ergue como presente da França, e é muito estranho o modo como a Europa encara o cinema americano. É verdade, a maioria ainda considera Eastwood um ícone. Mas, com o tempo, talvez a sua importância diminua à medida que o estatuto de culto de Ratboy cresça entre as suas ervas daninhas. Talvez seja um exagero, mas não esqueçamos que é o Velho Continente. Eastwood não é tão “inédito”. E filmes que lidam com sentimentos genuínos de forma genuína nem sempre são presa das modas por aqui. Não é coincidência que, quando John Cassavetes faleceu, Gérard Depardieu tenha alugado cinemas de Paris, exibindo os seus filmes. Ratboy assemelha-se a um filme independente inserido numa moldura da pop art; demasiado grande para as suas origens e para além de um grande estúdio, com um produtor malicioso ao leme.

Por imperfeito que seja, Ratboy é uma fábula que perdurará – um testemunho daquilo que Sondra Locke era capaz na realização. (Ela torná-lo-ia mais evidente com Impulse, mas também teve mais controlo com Impulse…)

Isto é compreensível, de certa forma. Se assistirmos ao filme hoje, algumas coisas não encaixam: é um projeto pessoal, e pitoresco também, sai fora de sintonia com o que a WB produzia na época (ou alguma vez produziu). Provavelmente, enquadrar-se-ia perfeitamente se fosse um projeto da Miramax ou da Fox Searchlight, uma companhia ou estúdio mais focado em filmes diferentes, que poderiam ser lançados no Festival de Sundance, por exemplo, pois não deixa de ser um filme mainstream. Se as circunstâncias fossem outras, poderia encontrar o seu público em festivais. E não está fora de questão.

Como Sondra Locke disse, o mercado independente não existia, e há muitas pessoas que conseguem separar questões pessoais da arte – aqui reside o cerne dessa questão –, e que adorariam vê-lo. Merece uma reavaliação e um lançamento em DVD.

Estávamos no fim de 1987, e Sondra Locke achou que tinha novos horizontes, profissional e criativamente. Descobriu que adorava realizar. “Era mais desafiador para mim do que representar; um trabalho muito mais árduo, mas, em última análise, também mais gratificante.”

Apesar do fracasso comercial, o seu trabalho e as críticas a Ratboy impressionaram os principais executivos da WB na altura, e ela foi incentivada a seguir esse caminho. Locke colocou três outros projetos em desenvolvimento na WB. Estes projetos foram todos cancelados quando Locke e Eastwood se separaram, alguns anos depois.

Sondra Locke era uma das poucas realizadoras a trabalhar em Hollywood na época. As coisas mudaram, mas ainda não há muitas. Será uma profissão “exclusivamente masculina”? “Não estou a par das estatísticas atuais e certamente existem mulheres a trabalhar, ao passo que não havia quando comecei. Ainda assim, são uma minoria, especialmente em filmes lançados nos cinemas”, diz Locke.

A sua carreira enquanto realizadora não progrediu como Locke esperava: Alega inocência da sua parte relativamente a questões de negócio e estava mais preocupada em recompor a vida pessoal. Nunca tivera um desentendimento tão grande com o companheiro. Achou que seria difícil resolver os problemas pessoais entre ela e Eastwood. Tinha visto um homem frio, que desconhecera até então. E ele também tinha visto uma mulher capaz de discordar e de dar luta. É assim que Locke coloca as coisas no seu livro. Tentou separar o pessoal do profissional. Se Eastwood tinha inveja profissional, ela sentia-se culpada: “Eu sentia-me sempre culpada se não fazia felizes aqueles que amava. Seria sempre um dos meus problemas.”

No final, é o trabalho que perdura. O tempo será juiz disso… também.

David Furtado

Um agradecimento especial a Sondra Locke

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