Ornella Muti: A Mulher mais Bela


Realizado em 1970, La moglie più bella foi o 10º filme de Damiano Damiani e a estreia de uma atriz que se tornou lendária. Para a adolescente de 14 anos foi uma prova de fogo interpretar a personagem central de um caso que chocou a Sicília (e a Itália) em 1965: A história autêntica de Franca Viola envolveu o Parlamento, o Presidente e até o Papa Paulo VI, que elogiou publicamente a coragem da jovem.

A rapariga siciliana de 17 anos cometeu o que, sob determinados conceitos, era considerado uma fuga à conduta normal. Foi raptada e violada pelo sobrinho de um don da Máfia. Na sociedade da época, este crime era encarado como uma espécie de… incentivo ao casamento: Uma “virgem desonrada” devia casar com o autor do estupro como modo de se reabilitar; era o chamado “matrimonio riparatore”. Franca fez o que ninguém esperava: Denunciou o criminoso, tornando-se numa pária na aldeia em que vivia – a união seria benéfica devido à pobreza da sua família e à riqueza do rapaz – mas desencadeou um processo e acabou por vê-lo atrás das grades, cumprindo uma pena de prisão de 11 anos.

Recorde-se que só em 1981, em Itália, seria abolida uma estranha lei: Um violador que casasse com a vítima via o seu crime anulado. 16 anos antes, na época em que o caso de Franca Viola chocou a opinião pública, as Nações Unidas começavam a reconhecer a gravidade do abuso doméstico. Assim, entre as feministas, a história da jovem tornou-se uma cause célèbre, embora ultrapasse o feminismo e seja uma questão de dignidade.

Pode dizer-se, sem exageros, que a humilde camponesa Franca Viola confrontou a estupidez da sociedade, os “costumes sociais”, e mudou a conduta de “nobres” mal formados que aplicam leis e julgam literalmente seres humanos em tudo superiores a eles.

Damiano Damiani, cineasta italiano que faleceu a 7 de março deste ano, teve sempre um talento inquestionável para abordar histórias que envolvessem o cidadão comum para quem a Justiça é mais um fardo e um oponente do que um direito. Os seus protagonistas tentam encontrar a resposta para uma injustiça. A minissérie La Piovra (O Polvo) em 1984, que daria origem a um grande sucesso da TV italiana e mundial, é disso exemplo: Polícias dedicados contra a Máfia.

Nascido em Pasiano, vila do norte de Itália, em 23 de julho de 1922, Damiani obteve a sua formação na milanesa Accademia di Belle Arti, na área do documentário. Viria a trabalhar em vários géneros durante as décadas de 50 e 60, mas distinguiu-se no tema do crime e do castigo. Fez uma incursão pelo western spaghetti com O Mercenário (El chuncho, quien sabe?) insistindo que o pano de fundo da Revolução Mexicana não passava disso. É um filme que torna enevoada a distinção absoluta entre o bem e o mal.

Il giorno della civetta (O Dia da Vergonha, 1968) com Claudia Cardinale e Franco Nero é outro exemplo do estilo de Damiani: Direto, lúcido e denunciador. Confessione di un commissario di polizia al procuratore della repubblica (Confissão de um Comissário, 1971) e Perché si uccide un magistrato (Porque se Mata Um Magistrado, 1975), ambos com Franco Nero, são ótimos exemplos do cinema de Damiano Damiani, que parecia instigar o melhor que os atores tinham para dar. Não foi só o caso de Nero, sucedeu com Giuliano Gemma em Un uomo in ginocchio (1980), um desempenho bastante diferente do habitual por parte do ator; e também com Gian Maria Volonté em Io ho paura (Tenho Medo, 1977).

Estes filmes, thrillers que frequentemente exploram a política e a criminalidade como duas faces de uma só moeda, parecem até suscetíveis de uma censura drástica. A seriedade de Damiani torna-os, contudo, difíceis de atacar por esse ângulo. Um juiz ou um advogado corrupto (em Itália e não só) não são nada de raríssimo, depende do modo como a situação é abordada. O realizador esquiva-se a polémicas e filmou com rara coesão estes temas.

Era necessária uma sensibilidade italiana para retratar o drama de Franca Viola. Em A Mulher mais Bela, de 1970, Damiano Damiani escreveu o argumento em parceria com Enrico Ribulsi e Sofia Scandurra, modificando certos detalhes e enquadrando o relato após o terramoto devastador ocorrido em 1968, a oeste da Sicília, calamidade que matou centenas de pessoas, arrasou a indústria, provocou desalojados e estabeleceu um clima de desespero. Sem desvirtuar a história de Franca Viola, Damiani pôde assim colocar os seus personagens numa atmosfera de ambiguidade moral, humanizando-os e deixando que os atos falem por si mesmos. Portanto, não é uma adaptação literal dos factos, mas também não embeleza realidades.

‘Vito Juvara’ (Alessio Orano) é protegido do mafioso adorado na cidade e que unificou uma dinastia de crime, ‘Don Antonino’. ‘Vito’ fica de certa maneira com o controlo da povoação quando ele é preso. Portanto, seguindo a boa tradição de macho bárbaro, quando se sente atraído por ‘Francesca’ acha o casamento inevitável. A rapariga pode ser inocente e até nutrir algum afeto por ‘Juvara’, mas ao ver a brutalidade dos atos, especialmente de um assassínio no meio da rua, ordenado por ‘Vito’, rejeita-o. A solução que o mafioso encontra é raptá-la, ato perpetrado com aparato, tiros, perante a apatia da população, e violá-la.

Quando a rapariga faz queixa na polícia, ninguém testemunha a seu favor, com medo, obviamente. O rancoroso ‘Vito’ ameaça a família – são acusados de bufos pela comunidade e põem a filha a comer erva como se de um animal se tratasse. A povoação em peso acha que ‘Francesca’ foi desonrada. Numa reação corajosa à cobardia dos pais, que temem represálias dos mafiosos, incendeia o celeiro da família, a fonte de sustento, achando que assim já pode ser tratada como um ser humano. Esta atitude provoca espanto e um estranho respeito em ‘Vito’ que, apesar de tudo, não cede quando ‘Francesca’ lhe pede uma única coisa: Que vá a um sítio público e reconheça o mal que lhe fez. O drama de ‘Francesca’ é duplo. Acreditava que ‘Vito’ possuísse humanidade apesar da brutalidade, mas este não coloca o orgulho acima de nada.

O filme é notável porque Damiano Damiani não retrata ‘Vito’ como um animal incapaz de generosidade. O realizador é menos suave com o padre da aldeia e a sua moral obtusa, para com as beatas e a mesquinhez de uma comunidade fechada e neuroticamente patriarcal, cujo único modus vivendi consiste em bajular mafiosos e seguir supostos preceitos familiares mais apropriados ao Neandertal.

‘Francesca’ visita uma rapariga a quem sucedeu o mesmo, sem saber o que fará e questionando-a sobre a impossibilidade de felicidade em tais circunstâncias. ‘Francesca’ triunfa no final, mas perdeu a inocência. Damiani mostra-nos Ornella Muti a caminhar sozinha em sentido contrário na mesma rua ampla com que o filme começa. A obstinação produziu frutos e desencadeou repercussões inéditas (a Justiça, para começar); a jovem é agora uma heroína para os conterrâneos, mas isso não lhe vai devolver o que perdeu, e é ela que lhes vira as costas.

HIPNOTIZAR A CÂMARA

Francesca Romana Rivelli tornou-se, logo com este filme, num ícone do cinema italiano, símbolo de uma rebeldia que se situava algures entre Gloria Guida e Sophia Loren. Isto deveu-se, não só ao seu sex-appeal e beleza mas também ao talento. Era apenas uma adolescente quando desempenhou o papel, mas assistimos já a uma atriz consumada, capaz de cenas dramáticas intensas, mais apropriadas a veteranas da representação. Outro fator em que assenta a mitologia de Ornella Muti é a fuga a estereótipos que hoje se encontram no cinema americano a rodos.

A sua ascendência é pouco comum: O pai é napolitano, a mãe, estoniana. Foi modelo na infância, antes da estreia no cinema e, entre 1970 e 1976, a atriz filmou 17 obras, a maioria comerciais e baseadas no seu carisma e físico.

Gian Piero Brunetta escreveu em Il cinema italiano contemporaneo que Ornella Muti possuía o dom de “hipnotizar a câmara com os grandes e misteriosos olhos”. Quando estava no set de La moglie più bella, a atriz não se sentia segura: “Conquistei o equilíbrio ao ter uma filha quando tinha 17 anos. Aos 14 anos, fui parar a um set como protagonista. Não percebia nada. E não percebi nada durante anos. Nunca quis ser atriz. Era tímida. Tão tímida que receava atravessar a rua sozinha.”

Mario Monicelli, cineasta que trabalhou com muitas lendas do cinema italiano e mundial, como Marcello Mastroianni, Anna Magnani, Monica Vitti, Giancarlo Giannini, Giuliano Gemma, Stefania Sandrelli ou Gian Maria Volonté, destaca Muti, que dirigiu em Romanzo Popolare, de 1974: “Parecia-me uma rapariga muito jovem, mediterrânica e bonita, e ela era isso tudo. Mas revelou-se uma das maiores surpresas da minha carreira. Bem, Ornella Muti surpreendeu-me pela facilidade, tranquilidade, a naturalidade com que desempenhava a personagem. Compreendeu-a logo. Estava sempre pronta para a claquete.”

Em 2008, Monicelli refutou a teoria de que Ornella, tendo em conta o seu trabalho ao longo das décadas, é uma atriz medíocre. “Não é verdade. Como é tão bonita, podemos limitá-la a isso, dizendo que é uma bela presença e nada mais. Basta vermos o trabalho que fez com [Marco] Ferreri.” É certo que as incursões de Muti pelo cinema de autor foram limitadas. Segundo Mario Monicelli, “Muti era capaz de fazer tudo. Talvez a culpa de certas opções de carreira não tenham sido suas, mas do seu marido e agente. Era uma profissional.”

Muitos realizadores aproveitaram a fotogenia da atriz, o que Monicelli justifica assim: “O ator deve recitar com todo o corpo, com a mímica. O que recordamos dos grandes atores? Os gestos. O que nos vem logo à mente com Chaplin? A figura, bengala, a postura.”

Francesca surgiu no set de A Mulher mais Bela acompanhada pela irmã mais velha, Claudia, então com 19 anos. Mino Giarda era o assistente de realização do filme e relata como “nasceu” o mito. Era menor, não esqueçamos:

“A cena da violação foi filmada de um modo elegante, sem que o espectador testemunhe. Mas como obter permissão? Podiam passar meses. O diretor da produção disse, ‘mudamos-lhe o nome’. Por essa altura, tinha ouvido o primeiro concerto de Riccardo Muti. Ornella Vanoni era uma grande amiga, e assim nasceu Ornella Muti.”

No final desta sequência, Damiani foca o rosto em lágrimas da atriz e o seu olhar intenso exprime ultraje e humilhação, sinal de que algo mudou para sempre no íntimo do personagem. Este efeito foi obtido com chicotadas ligeiras que o próprio realizador, conhecido por ser exigente com os atores, aplicou nas pernas da estreante. Durante anos, Ornella Muti lamentou e reprovou a dureza de tais métodos.

Damiano Damiani defende-se, considerando que se tratou de intuição: “Pareceu-me que Muti seria totalmente credível. Tinha de haver uma aura de inocência, uma atriz como [Catherine] Spaak não seria adequada. Muti tinha 14 anos e, quanto a mim, protagonizou um dos melhores filmes que alguma vez fez. Infelizmente, nunca mais a vi, nunca me telefonou, sabe-se lá porquê.”

Outro elemento importante de A Mulher mais Bela é a banda sonora de Ennio Morricone, um dos seus trabalhos menosprezados. Evoca a atmosfera bucólica, integrando os vocais da habitual colaboradora Edda Dell’Orso acompanhando-a de sons que sugerem uma violência oculta em atos cobardes (como o da comunidade).

Com uma expressividade invulgar, Ornella Muti quase retira o protagonismo a Alessio Orano, ator que casaria com Muti em 1975 – trabalharam mais vezes em conjunto e divorciaram-se em 1981. A fisionomia curiosa do ator, mistura de crueldade com ar de sedutor, restringiu-lhe a carreira, acabando por ser vítima do typecasting: Lisa e il Diavolo de Mario Bava (1973) ou o giallo L’assassino è costretto ad uccidere ancora (1975) foram pontos altos do seu percurso. Acabaria por se retirar da profissão de ator.

Em La moglie più bella, encontramos uma belíssima fotografia, para a qual contribui a luz natural de Cinisi, em Palermo e o talento do responsável por essa área técnica, Franco Di Giacomo. Na época, era quase estreante, e teria pela frente projetos com Bernardo Bertolucci (Strategia del Ragno, 1970), Dario Argento (4 mosche di velluto grigio) e Michael Radford (Il Postino, 1994) conhecido em Portugal como O Carteiro de Pablo Neruda. Di Giacomo colaboraria mais vezes com Damiano Damiani.

É pena que, da vasta filmografia da atriz, com mais de 70 projetos, entre séries, minisséries e longas-metragens, apenas meia dúzia de títulos tenham edição portuguesa. É sobretudo conhecida por ter sido considerada a mulher mais bonita do mundo em 1994 através de uma sondagem feita entre os leitores da revista Class. A sua interpretação de ‘Princesa Aura’ em Flash Gordon tornou-a numa estrela internacional em 1980 e foi recentemente eleita a mais adorada pelos apreciadores de filmes de ficção científica.

A mulher mais bela poderá ter sido Ornella Muti. E não será Franca Viola digna dessa mesma denominação? 

David Furtado

6 pensamentos sobre “Ornella Muti: A Mulher mais Bela

  1. Sabia apenas que era um caso verídico. Só quando escrevi o texto, fui averiguar melhor. Fiquei espantado com a coragem desta rapariga que foi contra a Máfia, os tribunais e tradições seculares. Itália não era caso único, infelizmente.

    Sim, a Ornella Muti é daqueles mitos para os italianos (e não só), como Giuliano Gemma, Franco Nero, Tomas Milian, entre outros.

Comentários:

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