Shadows: “O tiro de partida para uma corrida que ainda não acabou”


Um ator com a carreira assegurada, ao ver tantos amigos e colegas no desemprego, lembrou-se de criar um workshop em Nova Iorque, onde poderia criar um local de encontro. Quem sabe, talvez fizessem contactos e aprendessem um pouco… A ideia teve tanto de altruísta como de inviável: O ator não tinha tempo para lições. E poucos apareceram. Por isso, decidiu pôr um anúncio no jornal e abrir a porta a todos os aspirantes a atores. No dia seguinte, tinha a casa cheia de médicos, advogados, bancários, empregados de mesa… Este acaso do destino originou o primeiro filme independente da História do cinema, que, na definição de Martin Scorsese, “deu o tiro de partida para uma corrida que ainda não acabou”. O ator era John Cassavetes, o filme foi Shadows, e esta é a história desse acaso.

Acho que há, certamente, muitas, muitas coisas maravilhosas acerca das quais escrever nestes tempos de desilusão e terror e fatalidade iminente. Temos de adotar uma postura mais positiva ao fazermos filmes, dar mais umas quantas gargalhadas e tratar a vida com um pouco mais de esperança do que no passado. Shadows é um drama realista com esperança… um filme esperançoso sobre um escalão mais baixo da sociedade americana… como vivem, como reagem. As pessoas têm esperança. Acreditam nalguma coisa. Eu acredito nas pessoas.

Cassavetes fizera a transição de ator de TV para o cinema com sucesso, ao contrário de muitos colegas. Este percurso não foi ortodoxo; chegou a algemar-se a um radiador numa sala de espera, para ser recebido num casting. Desde fazer o pino a rasgar a camisa do agente (!), muitas foram as ideias mirabolantes do rapaz que só enveredou pela carreira de ator para conhecer mulheres numa escola de arte dramática. 

Quando ainda era desconhecido, passeava em Nova Iorque com um grupo de amigos e viu uma receção com direito a limusine, barreira policial e passadeira vermelha. Disse aos amigos para esperarem e desapareceu na multidão. Foi grande o espanto quando o viram a sair de uma limusine, acenando ao público e recebendo aplausos, sorridente, de t-shirt e jeans, antes de ser expulso pelas autoridades.

Quero com isto dizer que já então denotava algum desprezo pelos cerimoniais do glamour, a sua maior preocupação era expressar-se. E John encontrou muitas limitações. Os atores tinham de ir para aqui, para ali, parar a tempo de ficarem focados e com a devida iluminação, dizer as falas de maneira robótica. Sujeitos a tantas diretivas, esqueciam-se da espontaneidade. Como a atingir em pleno? Como escapar a estes moldes? Já fervilhavam em John várias ideias, mas não sabia ainda onde as focar.

Tornou-se veterano da TV em direto, com mais de 100 transmissões no curriculum. Fez de toureiro, cavaleiro, galã, em tragédias, melodramas e soap operas, entre 1954 e 1959. Foi até ‘Raskolnikov’ de Crime e Castigo. Fez teatro e surgiu no grande ecrã, dirigido por Don Siegel ou ao lado de Sidney Poitier. Foi elogiado como “grande promessa”, “intenso”, “expressivo”, “o novo James Dean”. Não bastava. A palavra que melhor o descreve, nesta fase, em finais dos anos 50, é “magnético”.

Não quero com isto cair no discurso idólatra de Roger Ebert, para quem Scorsese é um deus. Nem eu sou Ebert nem Scorsese é um deus, ou Cassavetes. Mas é um “filósofo do cinema”, como Brando ou Pacino; um indivíduo que recusou caminhos fáceis, saiu prejudicado, mas não vendeu a alma por dólares. Lembra até aquele genial discurso de Al Pacino em Perfume de Mulher, “a alma deste rapaz não está à venda!”

O pai de John Cassavetes, ao contrário da mãe, recebera bem a notícia, quando o jovem disse que queria ser ator, mas advertiu-o: “É uma grande responsabilidade. Vais falar por aqueles que não têm voz!” John parece ter levado o conselho à letra, pois tornou-se um rebelde, sim, mas com uma causa.

Isto conduz-nos a Shadows, às pessoas que vivem na sombra, longe das luzes da cidade; podemos encontrá-las, hoje e sempre. Foi esta a inspiração para o título. As primeiras experiências, em que John encorajou a improvisação, não correram bem; descobriu que tinha de dar uma tarefa concreta aos atores. Depois de uma aula, em janeiro de 1957, Cassavetes convocou um grupo de alunos para aparecerem no domingo seguinte.

Uma era a ex-bailarina de 19 anos, Lelia Goldoni, que deveria desempenhar o papel de irmã de Hugh Hurd, colega de John em Edge of the City, e que agora o ajudava nas aulas. Goldoni era branca, descendente de sicilianos e nova-iorquina, e Hurd era negro. Estabelecida a empatia, Cassavetes juntou ao grupo Benito Carruthers, no papel de outro irmão, um beatnik. A fisionomia dos atores permitia-lhes passar por mestiços. As improvisações duraram horas e horas.

“SE TODOS DEREM UM DÓLAR…”

Então, John contrata o cameraman Erich Kollmar, que trouxe uma câmara Arriflex de 16mm. Arranjou também um sistema de som e luzes rudimentar. Os alunos forneceram os adereços e o mobiliário. Nas palavras de John, “Shirley Clarke, uma das poucas realizadoras independentes ativas nessa época, tinha o único equipamento na cidade, por isso, trouxe-o e disse, ‘fiquem com ele, vá lá, não vou precisar disto nos próximos seis meses’”.

O som, tão elogiado devido à edição inovadora, com falas sobrepostas, resultou de um incidente; as bailarinas de Bob Fosse ensaiavam no andar de cima, o barulho era exasperante e as falas foram sincronizadas posteriormente. O objetivo era filmar as experiências, e não uma longa-metragem, mas os acontecimentos precipitaram-se quando John Cassavetes foi convidado para um programa de rádio, o Night Show.

O anfitrião, Jean Shepherd, já o elogiara pelo desempenho em Edge of the City, e John retribuiu o favor. Confiante, falou sobre o projeto experimental no qual se envolvera; um workshop com autenticidade. Os problemas raciais que envolvia, os problemas reais das pessoas reais e os seus relacionamentos. Shepherd, genuinamente interessado, perguntou-lhe por que não havia mais filmes assim.

“Bem, se tiveres 100 mil dólares… mas, caso as pessoas queiram realmente ver um filme sobre pessoas, podem contribuir com um dólar”, gracejou Cassavetes. De certo modo, anunciava que não estava disposto a jogar pelas regras de Hollywood, em troca de dinheiro e fama. Era mais do que um ator contratado, queria ser um artista, um cineasta, procurar a verdade. Ainda hoje se especula se terá sido calculista nesta intervenção e no pedido que fez. Certo é que, durante a semana seguinte, a estação de rádio recebeu mais de dois mil dólares de contributos dos ouvintes, a maioria, em notas de um dólar.

“Um soldado apareceu com cinco dólares, depois de ter vindo à boleia quase 500 quilómetros, só para contribuir”, espantou-se Cassavetes. Uma rapariga perturbada abordou-o na rua, entrou no workshop e ajoelhou-se diante do ator, chamando-lhe “Messias”. Cassavetes deu-lhe um trabalho na edição de som, o que fez a rapariga endireitar a vida. “Na verdade, muitas das pessoas que trabalharam no filme eram problemáticas, e estabilizaram ao trabalharem connosco. A partir dessa altura, eu não quis saber se Shadows seria um filme bom ou mau; tornou-se num modo de vida que aproximava as pessoas”, declarou John.

Uma semana após a emissão de rádio, as filmagens começaram, embora não houvesse argumento. A equipa trabalhava durante a noite e, muitas vezes, só acabava de madrugada. Nesta fase, John conheceu um jovem que lera o anúncio acerca do workshop no jornal. Como o preço de admissão era insignificante e Cassavetes era conhecido, Seymour Cassel apareceu.

“Disse-lhe que não tinha muito dinheiro, mas que gostava do seu trabalho e queria juntar-me ao grupo por ser de borla. John era bom ouvinte e adorava conhecer pessoas, por isso, contei-lhe a história da minha vida. Ele disse-me que suspendera as lições há um mês, por estar a rodar um filme. Mas sugeriu que eu podia estudar com Burt Lane [que lecionava, na ausência de John]. Depois disse que tinha de ir filmar. Perguntei se também podia ir e ele disse-me, ‘claro’.” Cassel tornar-se-ia num dos amigos mais íntimos de Cassavetes e colaboraria com ele em vários filmes.

O CAOS

Os únicos profissionais envolvidos em Shadows foram John e Kollmar, mas as questões de profissionalismo não eram importantes: “Do princípio ao fim, aquilo tornou-se num acidente criativo”, disse Cassavetes. As intenções eram louváveis, mas a primeira semana de filmagens serviu de pouco. Lelia Goldoni recorda que “foi um caos. Toda a gente fazia tudo. Ninguém sabia o que se passava”.

Até Cassel, apenas com alguma experiência teatral, ao aparecer, viu “uma câmara, algumas luzes, um Perfectone para captar o som: Isso era Shadows. Fiquei a observar e, quando vi que lidavam com um problema, ofereci-me para ajudar. Andámos nisto a noite toda. Eles improvisavam as cenas e recomeçavam, sem pausas. Ao pequeno-almoço, conversei com John e perguntei-lhe se podia voltar. Acabei por regressar todas as noites, até ao final, e aprendi muito assim. Uma vez, John pediu-me para segurar na câmara, e eu concordei logo. Era a primeira vez que filmava, mas já assistia àquilo há duas semanas. Fiquei feliz, senti-me um autêntico cameraman. Perguntei-lhe se gostara, ele disse que sim, e pediu-me para o fazer de novo. Embora tivéssemos um operador de câmara, John adorava que cada elemento do grupo se sentisse responsável e tivesse oportunidade de progredir”.

Era inevitável que as verbas se esgotassem, ao filmar desta maneira. Várias figuras conhecidas da Broadway doaram contributos, e até Hedda Hopper, a célebre colunista social de Hollywood, que escrevera positivamente sobre John e o apreciava, contribuiu. A notícia espalhara-se, e os realizadores William Wyler, Joshua Logan e Robert Rossen apoiaram com dinheiro do seu bolso, totalizando mil dólares.

A verba foi suficiente para manter a hesitante experiência durante os quatro meses de rodagem seguintes. A pós-produção de Shadows, contudo, demoraria ano e meio. A John Cassavetes, faltavam os conhecimentos técnicos necessários a um realizador. Dizia para revelarem os seus takes favoritos, mas esquecera-se de alguém para o cargo de supervisor de script. Como resultado, todos se esqueceram dos tais takes favoritos e a película (30 horas de material!) foi toda revelada.

“Fizemos tudo mal, tecnicamente… a única coisa que fizemos bem foi juntar um grupo de pessoas jovens, cheias de vida, e que queriam fazer algo com significado.”

Os conhecimentos rudimentares acerca da captação de som, por parte da equipa, além da falta de um guião, tornaram a sincronia das falas num pesadelo. Cassavetes teve de recorrer a uma escola de surdos, que leram os lábios dos atores, para que se percebesse o que diziam. Esquecera-se também da licença autárquica para filmar em Nova Iorque, pelo que, na rodagem de exteriores, a equipa atirava a câmara para dentro de um táxi, que dava a volta ao quarteirão, sempre que aparecia um polícia. “Ah, somos turistas…” diziam.

O entusiasmo de John contagiava todos, e foi essa a força motriz desta loucura. O realizador descobrira a sua vocação e lições vitais foram logo aprendidas:

“Em Hollywood… toda a gente tem medo de fazer algo que fuja ao tradicional… existem certas regras e regulamentos, que, julgo eu, se destinam a destruir o ator e a torná-lo desconfortável. Num filme, temos marcas no chão, e o responsável pela luz ilumina essa área. Espera-se que o ator interprete uma cena dramática, dentro de uma espécie de região iluminada. Se ele sai um milímetro desse espaço, cortam o take e repetem-no. Por isso, o ator começa a pensar na iluminação e não na cena. Em Shadows, tentámos algo completamente diferente. Não só improvisámos, em termos de diálogo, mas também a nível de movimento. Portanto, o cameraman também improvisava, tinha de seguir os atores e a iluminação de modo genérico, para que o ator pudesse ir para onde lhe apetecesse.”

Ao contrário do habitual, Cassavetes não usou storyboards, (desenhos rudimentares dos planos), e o operador de câmara não sabia de antemão o que o enfrentava em determinado dia. Era a primazia do ator, e John seria até criticado por ser indulgente em demasia com eles. Neste processo, sem o saber, Cassavetes criava o primeiro filme independente, ia contra a “ética” de Hollywood, contra o modelo praticado na indústria, contra a estética, as políticas e até as morais vigentes. Nascera o “pai do cinema independente”, como hoje é chamado. Mas…

A VERSÃO FINAL

A primeira versão de Shadows teve uma exibição limitada – três vezes no Paris Theatre nova-iorquino, em sessões à meia-noite, no fim de 1958. A entrada era livre. “Foi um desastre”, assumiu Cassavetes, “a única pessoa que gostou do filme nem sequer fui eu, foi o meu pai, que lhe chamou ‘puro’. Não necessariamente bom, mas ‘puro’. Tínhamos convidado os colaboradores e todos os amigos que ajudaram. Um deles deu-me uma palmada nas costas e disse, ‘deixa lá, John, ainda és um bom ator’. Queriam que Shadows fosse bom, mas não fingiram.”

Em vez de ficar desiludido, Cassavetes percebeu onde fracassara nessa versão, com cerca de uma hora. “Era um filme totalmente intelectual e, por conseguinte, menos que humano. Eu apaixonara-me pela câmara, pela técnica, pelos planos bonitos, pelo experimentalismo e nada mais.”

Presente nestas sessões, estava um influente crítico de cinema e futuro cineasta underground, Jonas Mekas, que adorou o filme e o promoveu. Virado para a avant-garde, Mekas era fundador da revista Film Culture e colaborador da Village Voice. A sua revista atribuiu a esta versão de Shadows o recém-criado Independent Film Award: “Apresenta a realidade contemporânea de um modo inédito e nada convencional. Cassavetes conseguiu quebrar os moldes e armadilhas da convenção, mantendo uma frescura original. O improviso, a espontaneidade, a inspiração livre que se perdem quase por completo na maioria dos filmes, devido a um excesso de profissionalismo, são empregues a fundo nesta obra”, escreveu o fascinado Jonas Mekas.

O movimento Beat, Jack Kerouac, Jackson Pollock… era este o ambiente reinante na altura, e Mekas apelidou o filme de Cassavetes de Beat. Mas falhou o alvo, embora possamos admitir que esta atmosfera influenciou John. O realizador, amante de jazz, pensou em Miles Davis para a banda sonora, mas acabou por contratar outra lenda, Charles Mingus, pedindo-lhe que improvisasse. Mingus era um músico classicamente treinado e disse-lhe que tal demoraria semanas. Apenas uma composição sua pode ouvir-se em Shadows, «Nostalgia in Times Square», porque Cassavetes, impaciente, pediu ajuda ao saxofonista Shafi Hadi, que não se importou de improvisar com as imagens.

John não estava satisfeito com os resultados. Shadows deambulava sem linha narrativa. A crítica de Jonas Mekas já chegara a Inglaterra e fora ouvida, Shadows era a coqueluche do momento, Cassavetes era um “pioneiro”. O realizador contribuiu até um texto para a revista Film Culture, explicando o que estava errado com Hollywood:

“Hollywood não está a fracassar. Já fracassou. A probabilidade de ressurreição da indústria, através da expressão individual, é ténue, já que os homens com novas ideias não se comprometem com os chefes de departamento de Hollywood. Estes artistas já perceberam que comprometer uma ideia significa suavizá-la, arranjar uma desculpa para ela, traí-la. Em Hollywood, o produtor intimida o novo pensamento do artista com grandes somas de dinheiro e com o seu próprio ego, que fica preso a referências passadas de triunfos de bilheteira e experiência sem conteúdo. O artista comum é, portanto, obrigado a comprometer-se. E o custo desse compromisso é a traição das suas crenças básicas. E assim o artista é atirado para fora dos filmes, enquanto o homem de negócios faz a sua entrada.”

“No entanto, não existe outra atividade onde o homem se possa expressar tão plenamente como na arte. E, em todas as épocas, o artista foi honrado e compensado por revelar a sua opinião sobre a vida. O artista é uma figura insubstituível na nossa sociedade também. Um homem que possa dizer o que pensa, que possa revelar e educar, que possa estimular ou apaziguar e, em todos os sentidos, comunicar com os seus semelhantes. Ter este privilégio de uma comunicação de proporções mundiais num mundo tão incapaz de entendimento, e ignorar as suas possibilidades ao aceitar um compromisso, com toda a certeza vai conduzir o artista e os seus filmes ao esquecimento.”

“Sem a expressão criativa individual, sobra-nos um medium de fantasias irrelevantes que nada pode acrescentar, exceto ligeira diversão, a um mundo, já de si, diversificado. A resposta não pode ser deixada nas mãos dos homens do dinheiro. A resposta tem de vir do artista. Ele tem de entender que a culpa é sua: que a arte e o respeito pela sua vocação enquanto artista é de sua própria responsabilidade. E ele tem, portanto, de fazer com que o produtor entenda, com todos os meios ao seu dispor, que só permitindo ao artista uma expressão criativa plena e livre, a arte e o negócio dos filmes poderão sobreviver.”

Num gesto que Mekas interpretou como traição, e que geraria uma controvérsia entre ambos, John decidiu convocar de novo a equipa e filmar mais meia hora de material, criar uma linha narrativa, contornando as falhas que encontrara no trabalho, evitando que o filme apenas encontrasse eco nas elites e no circuito art house. A polémica com Jonas Mekas baseou-se nisto. Furioso, o crítico atacou Cassavetes na Village Voice. O ator/realizador não queria antagonizar-se com Mekas, mas ripostou com firmeza, na mesma publicação, a 16 de dezembro de 1959:

“A expressão de qualquer tipo tem de ser compreendida para ter significado. Mr. Mekas tem razão ao dizer que esta versão é totalmente diferente. Foi feita para ser compreendida, através da compreensão que advém da vida e não das opiniões dos outros. Não é, de todo, uma concessão e, a meu ver, é um filme superior ao primeiro. O estilo cinemático que tanta proeminência tinha, no primeiro, dá lugar às experiências emocionais com que os personagens se deparam. As cenas, quanto a mim, são significativas, a imaginação da juventude, que despoletou a primeira versão, regressa agora com mais força e clareza, e mais determinada a esclarecer, ao invés de provar.”

Consciente de que lhe faltava experiência técnica, Cassavetes aceitou protagonizar uma série policial, Johnny Staccato, como modo de pagar as dívidas, a renda e, além disso, a mulher estava prestes a dar à luz o seu primeiro filho. A série funcionou como um laboratório – atento aos detalhes, John acabou por realizar cinco episódios. Continuava absorto por Shadows. Tão absorto que, três dias antes de ser pai, é que se apercebeu do estado de gravidez de Gena Rowlands, que, obviamente, não gostou!

Entre a filmagem das duas versões, separadas por um lapso de dois anos, Lelia Goldoni divorciou-se, John foi pai, muito mudou. A atriz sublinha: “Não havia modo de captarmos outra vez o espírito da inocência juvenil, a ingenuidade anterior. Já não usávamos a mesma linguagem. Por esse motivo, ele escreveu os diálogos das cenas adicionais, embora tivesse um ouvido tão bom para diálogos que ninguém conseguia perceber quais as cenas de cada versão.”

Cassavetes convidou Al Ruban para se juntar à equipa: “Havia falhas na história, e ele queria continuar, mais duas semanas, para as colmatar. Eu disse-lhe que não percebia nada de realização, e ele admitiu o mesmo. Era um trabalho de equipa. Soou-me empolgante.” Ruban tornou-se assistente de cameraman e aprendeu no terreno, como todos.

Durante noites em claro, na sua garagem, John Cassavetes remontou o filme, conferiu-lhe uma estrutura e uma história. Basicamente tudo gira em redor de Lelia, que tem um romance com um rapaz branco, Tony (Anthony Ray). O seu irmão, Hugh, um músico falhado, não aprova e, quando o rapaz percebe que ela é negra, não consegue esconder os preconceitos. O outro irmão de Lelia, Ben, é um rapaz sem horizontes, uma figura Beat, que deambula pelas ruas de Nova Iorque, de mãos nos bolsos, a fazer lembrar De Niro em Taxi Driver. Passa o tempo em zaragatas e a engatar mulheres com os amigos, mas não é estúpido, apenas inadaptado.

Este enredo sobre um romance inter-racial pressupunha que o mercado para Shadows seria limitado: o Sul, onde a segregação racial era lei, estava fora de limites. Cassavetes, ainda assim, fugiu com subtileza a estereótipos ou sermões. O tema central de Shadows não é a raça, embora a falta de oportunidades para atores negros, na época, tivesse sido uma inspiração. Há vários temas, um dos principais é a perda da virgindade de Lelia, rapariga doce e desafiadora, que amadurece e se assume como mulher.

Numa sequência impensável num filme mainstream de 1959, Lelia acaba de fazer amor com Tony. Depois de consumado o ato, Lelia confessa: “Pensei que estar contigo fosse tão importante, que significaria tanto. Que, depois disto, duas pessoas ficariam o mais próximas possível. Em vez disso, não passamos de dois estranhos.” Este realismo, que espelha a vida de todos os dias, era inédito e interdito em filmes da época. Lelia perde as ilusões, tornando-se num espírito livre.

Shadows não tinha estrelas, artifícios de estúdio, guião, verbas, restava apenas a criatividade e esta foi aplaudida e reconhecida. No final, surge a mensagem: “O filme que acabaram de ver foi uma improvisação.”

Os últimos três anos da década de 50 foram tumultuosos para John; encontrou, não só a vocação, mas também a sua voz, casou e foi pai. “Shadows será sempre o filme de que mais gosto. Apenas por ter sido o primeiro, por sermos todos jovens, por ser impossível, por sermos tão ignorantes, e por termos sobrevivido durante três anos, a tudo e todos.”

Perdera-se um brilhante ator. John refletiria sobre o passado: “Eu encarava a representação com uma tremenda seriedade e não tinha grande talento; provavelmente, foi por isso que me virei para a escrita e a realização. Talvez tivesse uma boa voz, mas pouco mais. Não tinha nada de individual a dizer enquanto ator. Torna-se fácil, quando as pessoas nos aceitam. E fiz isso até me cansar. Percebi que nunca iria tão longe quanto queria, como ator, e não suportava a ideia de ficar por aí, dois anos, sentado, à espera que o telefone tocasse.”

Seymour Cassel estava em Londres quando fez uma chamada urgente para Nova Iorque, informando John que as notícias na imprensa acerca de Shadows (muito devido a Mekas) tinham deixado Londres em polvorosa, queriam vê-lo, mas não tinham uma cópia. Cassavetes apressou-se a enviar uma pelo correio, a obra foi logo exibida no The Beat, Square and Cool Festival e, depois, no Festival de Cinema de Veneza, onde inesperadamente conquistou o Prémio da Crítica.

A British Lion decidiu distribuir o filme em Londres, e John viajou até à capital britânica. Ele e Seymour ficaram maravilhados, à chuva, observando as filas no Academy Cinema em Oxford Street. Cassavetes reparou que um homem procurava dinheiro nos bolsos para pagar o bilhete. Foi ter com ele, tirou a sua carteira e perguntou, “de quanto precisa?”

O êxito de Shadows em Londres foi suficiente para motivar o lançamento nos EUA – segundo Cassavetes, era a primeira vez que uma companhia britânica lançava um filme na América. Toda esta atenção provocou um corte de relações com vários elementos da equipa – acharam que John não ajudara nada as suas carreiras, que recebia todos os louros e que devia estar a embolsar milhões. Processaram-no em tribunal. Nada de mais errado. John não ganhou nada, devido aos custos financeiros de Shadows. E não havia forma de recompensar os contribuintes anónimos. Sem lucros no bolso, mas sentindo-se feliz, John causou suficiente impressão à Paramount, que o contratou, não como ator, mas… como realizador.

Para Scorsese, que admitiu sempre ter tentado realizar obras que fossem um cruzamento entre Citizen Kane e Shadows, este último foi “o tiro de partida”. Hoje temos o Festival de Sundance, para dar apenas um exemplo, há subsídios, apoios, os realizadores e os filmes independentes proliferaram, tornando-se uma parte importante da indústria, lidando ainda com imensos obstáculos. Na altura, John Cassavetes não tinha nada a não ser obstáculos, apenas queria ajudar amigos no desemprego. Mas, como diz o ditado, “from small things, big things one day come”…

David Furtado

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